Pesquisa da Universidade do Café Brasil e PENSA – Centro de Conhecimento em Agronegócios -, aponta grande desequilíbrio de gênero na cafeicultura brasileira

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Estudo foi patrocinado pela illycaffè e apresenta proposta para a redução das práticas machistas

gênero

A inclusão de gênero foi tema de uma pesquisa inédita sobre o grande desequilíbrio de gênero na cafeicultura brasileira.E o resultado não foi dos mais animadores. Apesar de ser o maior produtor de café no mundo, e 13% das propriedades serem geridas pelas mulheres, seu papel na cafeicultura nacional é pouco valorizado sob diversos aspectos, mesmo com todo o avanço nos últimos anos, quando houve um expressivo aumento da mobilização e sensibilização das mulheres ligadas à cafeicultura no país, o que possibilitou maior acesso a informações, capacitação profissional e, inclusive, melhoria na qualidade do café. É o que revela a professora Doutora Christiane Leles Rezende De Vita, da Universidade do Café Brasil e PENSA – Centro de Conhecimentos em Agronegócios, que entrevistamos, juntamente com a Professora Doutora Raquel Soares, da Universidade de Viçosa, que liderou a pesquisa, e é uma das maiores especialistas em gênero do Brasil.

Confira a entrevista com as pesquisadoras:

Grão Especial – Como surgiu a pesquisa?
Christiane De Vita – O PENSA, Centro de Conhecimentos em Agronegócios, tem esse projeto com a illycaffè desde 2000, chamado Universidade do Café Brasil. A illy tem um programa semelhante ao da Universidade do Café em outros 26 países. Mas, só aqui no Brasil é que a gente faz pesquisa para o agronegócio do café, mais voltado para a produção. Nos outros países, as pesquisas são voltadas ao consumo, como cursos voltados para baristas, etc.

No princípio, fazíamos cursos para os cafeicultores e, com o tempo, o trabalho foi evoluindo e nós, da Pensa e da Illycaffè, vimos que a contribuição poderia maior seria na produção de conhecimento. Iniciamos as pesquisas e esta última é a 16ª. Como a nova pesquisa teve como tema o desequilíbrio de gênero, convidamos a Professora da Universidade de Viçosa (MG), Raquel Soares, para liderar, uma vez que ela é uma das maiores especialistas em gênero no país. Raquel é formada em Administração pela FEA, USP, é Mestre pela UFLA e Doutora pela UFMG.

Raquel estudou feminilidades, identidade de gênero com mulheres em cargos de gestão e, logo após a conclusão da sua tese, fez uma pesquisa sobre as mulheres na gestão do agronegócio, há oito anos, que deu origem a novos estudos segmentados por cadeias produtivas, inclusive no café. E esse envolvimento com as mulheres na cafeicultura a levou até a uma rede de pesquisadoras que estava estudando as mulheres nos cafés no Brasil, que acabou dando origem ao livro “Mulheres nos Cafés do Brasil”, realizado em parceria com a Embrapa Café e com a IWCA, Aliança Internacional das Mulheres no Café. E, desde então, vem trabalhando ainda com esse tema por meio de projetos de pesquisas e, também, em empreendedorismo social.

Grão Especial – De acordo com a pesquisa, um quarto das propriedades de café do mundo é gerido pelas mulheres. Qual é o retrato do Brasil?
Christiane De Vita – No Brasil, que é o maior produtor de café do mundo, os dados são um pouco diferentes. Segundo o último censo, 13% das propriedades de café são lideradas por mulheres. Agora, considerando a área plantada, é de 9% da produção do café.

Grão Especial – Ainda de acordo com a pesquisa, somos 95ª no grupo dos G11, na questão sobre índice de gênero. Como empoderar essas mulheres?
Raquel Soares – Eu vejo o empoderamento, principalmente, como resultado econômico. Quanto mais mulheres estão envolvidas na cafeicultura, melhores resultados nós obtemos, fortalecendo a cadeia. Mas, para chegar a esse empoderamento, primeiro é preciso trazer para essas mulheres uma pauta de discussões relevantes da cafeicultura e, embora seja um número menor do que em outros países, nós estamos falando do maior país produtor. Isso quer dizer que 13% representa muitas pessoas na cafeicultura mundial.

Segundo lugar, é preciso conectá-las umas às outras e conectá-las com as Organizações que fazem o papel de disseminar informação e conhecimento na cafeicultura. Porque o empoderamento também passa pelo conhecimento, que é poder. E rede também é poder. Não só entre mulheres, mas delas com as organizações.

Christiane De Vita – Identificamos também que as mulheres, normalmente, têm menos acesso à informação, a tecnologias de produção, como uso de fertilizantes, e mesmo acesso à internet além de restrições a financiamentos. Juntando todos esses fatores, é claro que a produção é menor, você tem uma produtividade menor e isso é claro que prejudica a sociedade como um todo. Imagina quanto a gente poderia estar ganhando, a sociedade como um todo, não só elas, porque tem uma perda de valor, perda de valor de produção.

Grão Especial – Exatamente isso. No relatório, vocês apontam que se houvesse um maior equilíbrio de gênero na cafeicultura, poderia haver um incremento de 12 trilhões de dólares no PIB global, de acordo com a consultoria McKinsey.
Raquel Soares – Gostaria de começar comentando o conservadorismo agro-industrial. O que pudemos perceber sobre o incremento nos negócios, é que está relacionado à questão da sucessão, do desafio das fazendas que têm somente mulheres na sua gestão. Essa continuidade, que está relacionada à sustentabilidade, uma vez que afeta a possibilidade de continuação do negócio, e faz com que, muitas vezes, as fazendas entrem em dificuldade de continuar porque mulheres não conseguem, por não terem esse acesso, essa formação ou talvez aceitação. Embora a gente tenha inúmeros casos bem-sucedidos no Brasil também, mas, falando em volume de negócios, é importante ter esse olhar sobre as próximas gerações. Porque estamos falando de uma mudança de cultura e que é a mais significativa que a gente pode imaginar ou desejar em termos de gênero ou questões envolvendo as mulheres na cafeicultura. Pra chegar nesse potencial de impacto econômico que gera no PIB, precisamos, não somente pensar em dividir o bolo, mas crescer esse bolo, incentivando o aumento no número de mulheres e o número de novos negócios relacionados a partir de mulheres com esse potencial de contribuição econômica ao setor.

Christiane de Vita – A gente realmente precisa mudar a cultura. Só que as mudanças culturais e sociais são muito lentas. Imagina quanto demora para que isso seja incorporado nas novas gerações. Estudos mostram que essa mudança cultural pode levar de 100 a mil anos enquanto que as mudanças provocadas por estratégias de empresas são muito mais rápidas, são implementadas muitas vezes em dez anos. Se as pessoas deixarem isso sem uma estratégia, empresas que estimulem que definam dentro delas, para seus funcionários, isso vai demora muito.  A pergunta que foi feita desde o início foi: o que pode ser feito? Como a gente pode, efetivamente, diminuir o desequilíbrio de gênero?

E todo o trabalho que foi feito, toda metodologia, foi todo desenvolvido pela Raquel. Foi definir categoria de análises e, a partir delas, quais estratégias podem efetivamente implementadas por empresas e mesmo por fazendas, por cafeicultores porque para que isso aconteça, empresas e pessoas precisam se envolver pessoalmente e profissionalmente.

Grão Especial – Existe um problema estrutural e vocês sugeriram algumas saídas. Quais seriam?
Christiane de Vita – Nosso objetivo foi efetivamente levantar pontos que podem ser implementados nos diversos agentes do sistema agro-industrial, onde consideramos desde a empresa de insumos, passando pela produção rural, a indústria, a distribuição, e chegando até o consumidor.

Pensando nesse sistema como um todo, quais estratégias podem ser implementadas para reduzir o desequilíbrio de gênero? Essa pergunta norteou todo o nosso trabalho. A partir disso, fizemos uma revisão de literatura, pra ver qual estado da arte, quais pesquisas já foram feitas no Brasil e no mundo, como está esse panorama. A partir disso, selecionamos pessoas para entrevistar, participaram de painéis. Nós chamamos de painéis de especialistas, por grupos, produtores de cafés etc. onde a gente entrevistava sobre o desequilíbrio de género. Juntamos depoimentos e formaram categorias de análises, foram seis categorias de grandes áreas – foram feitas estratégia e sugestões para os agentes e políticas públicas para os governos. Muito trabalho foi feito até agora, mas a nossa intenção foi dar um passo além: como reduzir o desequilíbrio no café?

Raquel Soares – Continua enquanto pesquisa propositiva, embora voltar na biografia, servindo como uma reflexão sobre o que vem mudando. O que está sendo feito, em que direção isso aponta, mas a gente precisa de intervenções mais diretas, no sentido das direções que promovam o equilíbrio. Ações isoladas não tem essa força de realmente contribuir de maneira efetiva para que o equilíbrio seja alcançado.

Grão Especial – Nesse sentido você está falando de Políticas Públicas?
Raquel Soares – Também. Políticas Públicas, mas as privadas também são importantes. Orientamos os nossos painéis por três grandes questões: os que já conhecem algo que já está sendo feito, quais são as vantagens que essas iniciativas têm trazido para a cafeicultura e o que mais poderia ser feito?

Quando levantamos essas questões, a gente também já está identificando a percepção desses especialistas convidados para os painéis em relação ao que é feito em termos da iniciativa privada, que tem sido mais atuante essa questão do que as políticas públicas e as que existem, por exemplo, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar Mulher (Pronaf), que é de política de crédito. Na cafeicultura, consulta os agentes que participaram e outras abordagens, primeiro temos pouquíssimos dados a respeito e, sendo, os dados que a gente tem não são muito animadores. Eles mostram que são pouco efetivas para promover o desequilíbrio de gênero.  A pesquisa traz luz à essa necessidade de fazer com que essas pp possam chegar às principais interessadas. No caso de café, que seriam os produtores. No caso, a gente tem ainda que contar com a iniciativa privada também.

Grão Especial – Me chamou muita atenção o termo “Identidades Ancoradas”. Podem falar sobre isso?
Raquel Soares – Sou a autora desse termo. Quando estava fazendo uma pesquisa para o CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), ele apareceu pela primeira vez, quando eu estava fazendo a transição no meu trabalho urbano para o agronegócio. E, na época, fiz uma pesquisa com as mulheres em organismos como sindicatos, cooperativas de insumos etc. E me chamou a atenção pela maneira pela qual a mulher se apresentava: eu sou filha de fulano, sou mulher de sicrano, trabalho ajudando meu pai!  Aquilo me chamou muito a atenção. O processo de ancoragem na figura masculina, para essas mulheres era gritante, e precisávamos criar uma identidade profissional legítima. Nossa pergunta era: qual o seu papel nesse negócio? Falamos de legitimidade, tomada de decisão e empoderamento pessoal. Isso foi em 2015, durante um seminário no Cerrado Mineiro.

É preciso reconhecer o papel da mulher no sucesso da agricultura. É preciso prepará-las para o sucesso, para a liderança, para o empreendedorismo, reconhecendo a legitimidade, onde quer que essa mulher esteja na cafeicultura.

Christiane De Vita – muitas vezes, a cafeicultora não tem nem papel regulamentando a profissão dela. Em inúmeras ocasiões, a mulher trabalha com o marido, mas só ele é reconhecido como cafeicultor, ela não. Depois, essa mulher não tem nem direito aos serviços sociais como aposentadoria, licença-maternidade etc. Essa questão da falta de identidade, muitas vezes leva a um problema real e também econômico. Como não está registrada no INSS como cafeicultora, quando ela for requerer a aposentadoria, simplesmente não consegue!

Raquel Soares – A gente tem que pontuar o seguinte: eu vejo como machismo estrutural a questão do patriarcado na própria herança, no sentido de transmissão por sucessão familiar no que se refere à terra. Eu acho que ali está a origem do que vem na forma como cadeia. Porque se a gente pega cooperativas, sindicatos, organizações e muitas vezes empresas, até grandes multinacionais, a gente está falando da base, daa origem, que ainda está ligada à questão da terra no Brasil.

A sucessão familiar, em outras palavras, privilegia o filho homem, que herda a fazenda, é tradição. Isso se processa na necessidade de trazer isso à tona e colocar de uma forma em que o problema apareça de forma atualizado. Vamos olhar para o curtíssimo prazo: os papéis masculino e feminino já mudaram muito. Um vetor importante dessa mudança é o aumento da escolaridade dessas mulheres. Inclusive nas áreas das ciências agrárias. Hoje tem mulheres trabalhando em pesquisa, em comercialização. Mudou, a gente precisa atualizar a maneira de fazer e de se falar desse gênero. Elas têm legitimidade de estarem lá?

Grão Especial – o trabalho feminino no meio rural é ajuda, não trabalho, certo? Mas nenhuma dessas conclusões são uma surpresa, correto? Quais são as ações sugeridas para reverter esse quadro?
Christiane de Vita – Esse é um ponto-chave, vamos levantar várias estratégias para explicar e divulgar nosso trabalho. Nosso trabalho agora é disseminar essas estratégias. Pra que mude, as pessoas vão ter que implementar. A cafeicultura de hoje é muto diferente da antiga, escravocrata. Os agricultores de hoje são empresários rurais, estão bem antenados, procurando fazer qualidade, preocupados com a questão ambiental, agora falta esse pulo, a gente traz sugestões para que eles pensem,

Como eles podem colaborar, mesmo ao criar os filhos. Os pais precisam se questionar, porque ele não leva a menina também na lavoura e não seu filho homem. O que pode ser feito em casa? Como a gente pode começar a mudar essa geração. Nosso trabalho é questionar isso. Eu me pergunto isso o tempo todo.

Grão Especial – Um outro ponto importante é que o empoderamento dessas mulheres do café, de acordo com a pesquisa, passa necessariamente por associações de mulheres. É isso mesmo?
Raquel Soares – Eu acho que o empoderamento feminino passa por essas associações de mulheres, mas só isso não resolve. É preciso chamar os homens para essa discussão no sentido de que, hoje, os dados mostram que nós ainda temos uma grande maioria de homens nas tomadas de decisões destas organizações que fazem parte do sistema agro-industrial. As políticas públicas e privadas precisam chegar a esses homens e  eles têm que ter uma mentalidade sensível ao gênero. Isso é fundamental.

Christiane de Vita – As associações, cooperativas são catalisadoras, elas aceleram esse processo, se forem pensados dessa forma. As propriedades estão distantes uma da outra. Precisa aumentar o conhecimento e o acesso dessas mulheres ao conhecimento. Eu vejo como prioritário. As cooperativas tradicionais precisam se repensar. Eu estou olhando realmente para as mulheres? A maior parte não está. E as cooperativas de mulheres, elas impactaram muito, fazem uma diferença na vida dessas mulheres.

Raquel Soares – Faz uma diferença na vida dessas mulheres e a sociedade como um todo sai ganhando. É uma mudança de impacto. Sempre gosto de trazer isso, a gente precisa entender de gente, de uma nova geração, com nova mentalidade. Falar de mulheres é uma questão crucial para a sustentabilidade na cafeicultura não só no Brasil como no mundo todo.

A pesquisa completa está disponível para download no site da Universidade do Café: http://universidadedocafe.com/publicacoes/cadernos-universidade-do-cafe-vol-12-2022

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