Segundo o relatório da MSI-Integrity, cerca de 40 certificações em todo o mundo foram analisadas.
A conclusão do estudo da é que elas podem, inclusive, servir para mascarar os abusos das grandes corporações aos direitos humanos e permitir a inação dos governos.
Muito dos padrões de certificação mais conhecidos no mundo, como Rainforest Alliance, UTZ e Fairtrade, entre outros, estão falhando em sua missão de assegurar a conduta ética das grandes corporações, como também estão servindo para consolidar práticas comerciais abusivas, segundo o relatório do instituto de direitos humanos, MSI-Integrity (www.msi-integrity.org) dos EUA.
Como foi o estudo da MSI-Integrity
Essa é a conclusão do estudo capitaneado pela diretora-executiva da entidade, Amelia Evans, advogada formada em Harvard. A conclusão de Amelia se baseia no relatório Not-Fit-for-Purpose, de 235 páginas (disponível no site da instituição) produzido depois de uma década de pesquisas, que envolveu mais de 10 mil empresas participantes em 170 países e abrange setores diversos como cacau, açúcar, óleo de palma, chá, minerais, frutos do mar, eletrônicos, joias e brinquedos infantis. “O risco é que essas iniciativas estejam legitimando comportamentos abusivos das grandes cadeias produtivas ao não detectá-los”, explica.
As certificações foram criadas no começo da década de 90 para preencher uma lacuna, segunda Evans. “As nações desenvolvidas do hemisfério norte do Globo conseguiam aplicar a lei em abusos nas cadeias produtivas das grandes corporações em seus respectivos países de origem. Mas não conseguiam fazer o mesmo com relação às atividades dessas multinacionais nos países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos.”, diz Evans.
“Essas certificações começaram a operar para suprir essas necessidades. Na época de sua criação foi um grande experimento. Mas, passados 30 anos, nosso estudo chegou à conclusão de que as certificações falharam em proteger os trabalhadores com relação aos direitos humanos”, conta.
A razão para isso, apontada por Evans, é que as certificadoras foram capturadas pelas empresas e corporações e não refletem mais as necessidades dos trabalhadores. Ela diz que os auditores terceirizados são normalmente pagos pelas mesmas empresas pra as quais são contratados para avaliar.
Ainda segundo a advogada, há dois problemas particulares: o primeiro é que há uma grande confusão sobre diferentes iniciativas. Mas de ¾ das certificadoras usam palavras como “responsável;” “justa”, “sustentável”. Mas essas palavras não querem dizer, por exemplo, que os trabalhadores vêm recebendo um salário mínimo decente para sobreviver.
“Entre todas as certificações, apena uma, a Fairtrade, exige que o trabalhador receba um pagamento mínimo”, diz. Por outro lado, há uma percepção equivocada por parte do consumidor quando ele compra um produto certificado. “O consumidor está achando que está fazendo seu papel. Porque ele acredita que as palavras, sustentável, justa, responsável, significam de verdade que o produtor está sendo tratado de maneira digna. Esse é um grande gap sobre o que está, de fato, acontecendo”, explica.
Evans ainda diz que a relação Hemisfério Norte-Sul permanece injusta. “Parece que todo o esforço continua sendo feito pelos produtores do sul do Globo. Quando você olha a margem de lucro, claramente percebe que o dinheiro fica com as corporações.
Definir preços abaixo do custo, solicitar retornos rápidos e outras práticas de aquisição agressiva por compradores das multinacionais também são aspectos amplamente negligenciados pelas certificadoras.
A maior pressão vem das grandes corporações para as grandes plantações. O que isso quer dizer na prática? Os mais vulneráveis são deixados de lado e tendem a ficar cada vez mais vulneráveis. Os médios e grandes também não escapam. Eles estão sob pressão da cadeia produtiva, que exige que eles tenham todas as certificações. Mas isso não quer dizer necessariamente que todo o seu esforço para consegui-las, irá reverter em uma melhor remuneração de seu produto.
Já os trabalhadores dessas propriedades, por exemplo, ficam com medo de denunciar e de perder seus empregos, e acabam suportando violações de todos os tipos. Por exemplo: uma mulher que sofre assédio sexual, não tem como reclamar. “Ela vai reclamar onde? Muitas das certificadoras têm seus websites em inglês e os trabalhadores não dominam a língua ou não tem familiaridade com a internet. E não sabem usar os recursos para responder um questionário sobre o ocorrido”, diz.
E vamos imaginar que a mulher em questão, num dia de trabalho normal no campo, recebe a visita de um empregado terceirizado da certificadora. Obviamente que ele estará sempre acompanhando de um funcionário da propriedade. Ao ser indagada sobre suas condições de trabalho, obviamente que ela irá se sentir amedrontada de denunciar e perder seu emprego. “Esse modelo de monitoramento é extremamente ineficiente”, afirma.
Na pesquisa da MSI-Integrity, ficou provado que 2/3 das certificadoras, não publicam as queixas que recebem de forma transparente. “Esse é o momento das mudanças acontecerem. As corporações precisam mudar. Elas continuam violando a lei para pagar mais dividendos para seus investidores”, adverte Amelia.
Amelia enfatiza que este é o momento para se mudar essa relação. “Temos uma janela de oportunidade. O momento para mudar é agora. Há um movimento crescente de mudança acontecendo nos EUA e no mundo. Acredito que as grandes corporações estão prontas para essas discussões. Precisamos repensar o papel das grandes corporações na sociedade. Meu receio é com o tipo de mudança que será proposta. Que seja fraca demais, com as ONGS e as certificadoras dando voz para as comunidades, mas não dando forças suficientes para efetuar as mudanças. Enquanto as corporações não transferirem o poder para as comunidades, não vai haver transformação na sociedade”, finaliza.
Leia o posicionamento oficial da Rainforest Alliance e UTZ:
Respostas por Mariana Barbosa, Country Director, Brazil.
1. Qual a posição de vocês com relação ao estudo de Amelia Evans, da MSI-Integrity? Concordam quando ela diz que as certificações estão mascarando abuso aos direitos humanos? E que acabam justificando a inação dos Governos? Vocês acham que podem ser responsabilizados por esses problemas?
Acredito que mascarando é um termo muito forte. Também não acredito que os desafios existentes nos programas de certificação sirvam para isentar o governo de nenhuma de suas responsabilidades. No Brasil, temos uma lei trabalhista robusta e com viés de proteção aos trabalhadores, apesar dos desmontes recentes dessa legislação. Entretanto, sabemos que a realidade do campo muitas vezes não contempla o que diz a lei, parte por má fé e parte por questões estruturais de pobreza, falta de capacidade e falta de conhecimento da mesma. O Governo possui mecanismos mais eficientes que a própria certificação de fiscalizar e garantir o cumprimento das leis, embora também possamos observar um desmonte recente das estruturas. Contudo, a certificação não deseja ser um substituto ao papel do governo e nem uma mera fiscalizadora de cumprimento das leis. Há requisitos complementares entre a lei e a certificação e ambos possuem mais potencial de causar transformações se atuando em conjunto.
2. Ela ainda acusa as certificadoras de conivência com as grandes corporações das grandes cadeias produtivas e de empobrecer as discussões sobre os direitos humanos dos trabalhadores rurais. É uma crítica contundente. Em pleno século XXI, ainda estamos discutindo neocolonialismo, pobreza no campo, trabalho escravo e infantil. Não é hora de se fazer uma mea culpa?
Sem dúvida nenhuma, estes problemas são críticos e todos os envolvidos nas atividades de produção, comercialização e até consumo de alimentos temos de fazer esta mea culpa. As grandes empresas, as certificadoras, outras ONGs, governos de países do Sul global, governos de países do Norte global, produtores, empregadores rurais, etc. A lista é longa, pois estes problemas persistem não só no Brasil, mas em diversos países do mundo. Entretanto, não temos nenhum interesse em empobrecer as discussões sobre direitos humanos. Nos últimos anos, contratamos mais especialistas no tema de direitos humanos para lidar com o assunto de forma global, internalizamos a prática de “Advocacy” (muitas vezes traduzido como influência) em nossa estratégia de atuação construída em 2018, participamos de fóruns globais e locais sobre direitos humanos em cadeias produtivas (no Brasil, destacamos nossa participação no Inpacto – Pacto Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo) e estamos fazendo esforços para canalizar investimentos das grandes empresas em estudos e projetos que possam trazer dados e informações qualificados e intervenções que melhorem a vida do trabalhador rural. Cabe ressaltar que tal situação é um problema complexo e, como sabemos, problemas complexos não possuem uma única solução trivial. Então fazemos escolhas de caminhos e atuações que acreditamos serem mais consistentes com nossa expertise interna e histórico de atuação, mas também esperamos que outros atores façam sua parte nessa complicada jornada. Esta posição de responsabilidade compartilhada pela atuação frente a problemas complexos já é, há bastante tempo, defendida publicamente pela Rainforest Alliance.
3. Vocês já tinham conhecimento do estudo, antes da publicação da matéria do The Guardian?
Recebemos uma cópia do estudo 24 horas antes da sua publicação, por meio da ISEAL Alliance, da qual somos membros plenos.
4. Segundo Evans, as certificações não são mais ferramentas para conter o avanço das grandes corporações na proteção dos direitos humanos. É possível todos sentarem à mesa para melhorarem o que já foi implementado? Como acham que o trabalho das certificadoras pode avançar? O que foi criado lá atrás para assegurar ao consumidor que o café, o chá e cacau eram produzidos de acordo com critérios rígidos não deve ser revisto e aprimorado?
Claro, podemos e devemos avançar. Nos últimos anos, após a fusão com a UTZ em 2018, estamos nos esforçando para construir um novo programa de certificação mais adequado a realidade dos novos tempos. Fizemos mudanças não só em nossa norma, mas também em nosso sistema de asseguramento, com o objetivo de torná-lo mais robusto e também mais realista e transparente. Progredimos de uma lógica de cumprimento ou não de requisitos para outra de observação de melhorias contínuas. Partimos de uma lógica mais aberta para endereçar questões de direitos humanos, como o Assess and Address. A atual proposta de Avaliar e Abordar exigir que as propriedades rurais certificadas estabeleçam mecanismos de comprometimento, comunicação, monitoramento e remediação para questões de discriminação, trabalho forçado, trabalho infantil e assédio e violência no local de trabalho.
5. Acreditam que o trabalho da MSI-Integrity pode, de alguma forma, colaborar para o aprimoramento dos processos?
Sem dúvida alguma, uma vez que a análise do MSI-Integrity é válida e útil, em boa medida, apesar de não compartilharmos a conclusão final. Concordamos, por exemplo, que deve haver uma maior regulamentação e fiscalização por parte dos governos. As certificações surgiram justamente para preencher este vazio, e estamos cientes de que certos abusos dos DDHH requerem de uma fiscalização e sancionamento firmes que não podemos suprir como certificação voluntária. A sanção mais grave que podemos dar é suspender ou anular a certificação de uma empresa, que em decorrência disto perde acesso ao mercado certificado. A eficácia de certificações depende em boa medida da boa fé em sua implementação.
O relatório da MSI-Integrity infelizmente não propõe soluções dentro dos parâmetros das certificações, porque questiona os mesmos. Uma das críticas válidas por exemplo é que as certificações carecem de mecanismos efetivos para que vítimas de violações de DDHH apresentem queixas (“grievance mechanisms”). Os mecanismos de queixa implementados até agora são gerenciados pelas próprias empresas certificadas. No caso de queixas trabalhistas, problemas com discriminação, abuso sexual, fatos que podem ter a sua origem no comportamento da própria empresa, as vítimas podem não estar usando este mecanismo por temor a represálias. O nosso monitoramento revela que o número de queixas é baixo, mesmo sabendo que os mecanismos de queixa formalmente existem. Em decorrência disto, no recém lançado novo Código de Conduta, por exemplo, instituímos que a empresa certificada deve instaurar um comité de queixas (“grievance committee”) composto por um representante da empresa e um representante eleito dos/as trabalhadores/as, para receber, analisar e, caso necessário, remediar / ressarcir (ou encaminhar às autoridades competentes) as queixas que sejam fundamentadas. O comitê também monitora e apresenta um relatório anual sobre o tratamento dado às queixas, incluindo medidas de ressarcimento e medidas de prevenção. Isto já é um aprimoramento dos processos que deverá resultar em um maior número de casos de violações aos DDHH sendo registradas e efetivamente remediadas. Este tipo de melhorias, no entanto, requerem anos de esforço continuado para implementar e não vão fazer as manchetes amanhã.
6. De que maneira vocês vêem trabalhando no sentido de aprimorar seu trabalho no campo juntos aos produtores e realmente se certificarem de que não está havendo abusos como trabalho infantil ou análogos à escravidão tanto nas fazendas de café, cacau e chá?
No Brasil, estabelecemos uma Política de Mitigação de Riscos Sociais para as auditorias da Norma Rainforest Alliance e UTZ, onde as entidades certificadoras devem fazer específicas
investigações antes, durante e após as auditorias para assegurar que os produtores auditados não estejam contidos em listas de violações de direitos humanos, trabalhistas e ambientais. Além disso, ao aplicar-se à certificação o produtor precisa declarar todos os processos judiciais em curso que estão dentro do escopo de certificação a ser auditado – pois entendemos que isso é um insumo importante para que auditores possam verificar a realidade das propriedades rurais.
Nossa norma é clara quando estabelece que esse tipo de violação, ou a inserção do nome do produtor nestes tipos de listados representam a imediata suspensão, investigação e eventual cancelamento do certificado.
7. Como atender os pequenos produtores a obter sua certificação com um preço compatível e que eles possam arcar? Países europeus exigem as certificações para que o pequeno produtor possa vender seus produtos nesses lugares. O consumidor europeu também exige produtos certificados. Porém, o custo é altíssimo para o pequeno produtor que, raríssimas vezes, pode arcar com mais essa despesa. No caso do café, por exemplo, os preços praticados não cobrem seus custos.
Temos um código especial para pequenos produtores e a possibilidade de certificação em grupo, que reduz os custos. Também estamos implementando uma série de melhorias no monitoramento do prêmio, ou diferencial de sustentabilidade, o valor extra que é pago aos produtores para compensar os investimentos em uma produção mais sustentável. Queremos garantir que este valor chegue na ponta. Na nova norma da Rainforest Alliance, será obrigatório o pagamento do prêmio em espécie, e parte do mesmo deverá ser investido em benefício aos trabalhadores, em itens como salários, condições de trabalho, saúde e segurança, moradia e outros. Além disso, há empresas e exportadoras que arcam com os custos da certificação junto aos produtores. Estamos, também, trabalhando internamente para criar materiais de treinamento de mais fácil acesso aos produtores, para que os mesmos possam compreender melhor o passo-a-passo de se certificar, sem depender da contratação de consultores. Cabe apenas ressaltar que a Rainforest Alliance não cobra nenhum valor dos produtores para que os mesmos se certifiquem. Eles pagam apenas a auditoria, diretamente à empresa prestadora do serviço.
8. Além disso, as certificações não são garantia para o consumidor de que o café, o chá e o cacau estão livres de trabalho infantil e escravo, entre outros problemas. Haja visto o que aconteceu na Guatemala recentemente, com as fazendas fornecedoras de café da Nespresso, que desrespeitaram a prática de produção ética e sustentável e que eram certificadas pela Rainforest Alliance.
Sim, já faz um tempo que comentamos abertamente que a certificação não foi desenvolvida para isso e que, portanto, não fornece este tipo de garantia. O que fazemos é observar se há uma série de procedimentos institucionalizados que reduzam a chance destas violações acontecerem, se há a adoção de boas práticas nas fazendas, se os trabalhadores estão registrados, fazem os treinamentos que competem aos mesmos e estão alojados dignamente. Nas auditorias, são verificadas a documentação de trabalho dos funcionários das fazendas, as condições de alojamento, mas não podemos garantir que, ao fim deste processo, violações não possam acontecer. Para melhorar o asseguramento, estamos fazendo o uso de uma abordagem baseada em risco. Regiões e fazendas identificadas com maior potencial de apresentar trabalho escravo, podem receber auditorias surpresas extras para verificação das condições. Também atuamos de forma reativa quando recebemos denúncias de trabalhadores, sindicatos ou outros atores da região. Nestes casos, abrimos uma investigação interna junto à empresa de auditoria, fazemos novas auditorias, se necessário, e caso sejam, constatadas irregularidades, suspendemos ou cancelamos a certificação. Tivemos diversos casos de certificados cancelados recentemente e melhoramos muito o nosso processo de revisão das informações coletadas na auditoria, o que nos dá mais capacidade de negar licenças de fazendas que não estão cumprindo as regras.
9. No Brasil, especificamente, temos, no momento, um governo totalmente inepto. Apenas um fazendeiro, proprietário da fazenda Cristo Rei, no Mato Grosso, desmatou o equivalente a 24 milhões de hectares de florestas para sua criação de gado. Esse mesmo fazendeiro fornece carne para os maiores frigoríficos do mundo, como JBS e depois é vendido para os principais mercados consumidores, muitas vezes com selo das certificadoras. Como lidar com essa ineficiência?
A produção de gado é uma causa relevante de desmatamento e os desafios nesta cadeia produtiva são variados. Acreditamos que as abordagens no nível da paisagem e comunidades – estratégias que empregamos com sucesso documentado por décadas – são particularmente adequadas para enfrentar os desafios associados à criação de gado, que vão além do escopo de uma única fazenda. Além disso, colaboramos com ONGs parceiras e especializadas no tema de desmatamento e produção de gado, fortalecendo o trabalho científico e de campo realizado pelas mesmas.