Adriana Reis é uma das maiores autoridades brasileiras quando se fala em cacau.
Baiana, é doutora em Biologia e Biotecnologia de Microorganismos e especialista em tecnologia de pós-colheita. Adriana trabalha há mais de 20 anos ajudando o produtor de cacau a tirar o melhor da fruta.
Atualmente atua como gerente de qualidade do CIC, Centro de Inovação do Cacau, em Ilhéus, que, aliás, ajudou a fundar em 2016. O Centro nasceu dentro da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC – como uma startup, por disposição do Parque Científico e Tecnológico Sul da Bahia – PCTSB – e de Cristiano Vilela, ex- Mars Brasil, atual diretor científico do CIC e diretor executivo da BioInnovatec, a investirem na melhoria da qualidade do cacau brasileiro, para atender a uma crescente demanda internacional.
Em quarentena, Adriana deu uma entrevista exclusiva ao Grão Especial que você lerá a seguir.
Grão Especial – Como está se virando em quarentena, uma pessoa tão ativa como você?
Adriana Reis – Estou bem. Cheguei de São Paulo, do Chocolate Festival, super gripada, achei que estava com o Coronavírus mas, graças a Deus, era só um resfriado. E eu tenho filho pequeno, imagina meu receio. O que ajuda é que estamos em momento de baixa temporada, então, conseguimos dar férias pra todo o mundo.
Grão Especial – Como você começou a trabalhar com cacau?
Adriana Reis – Sou bióloga de formação e vim de uma ONG chamada Instituto Cabruca www.cabruca.com.br, uma cooperativa que trabalha com agricultura familiar de produção orgânica e agroflorestal, associada à conservação da Mata Atlântica. Minha parte era trabalhar com o manejo no campo. Naquela época, não havia um mercado de cacau de qualidade dentro do país. Mas a gente já entendia lá atrás, que o cenário do mercado internacional do cacau estava mudando. O Equador e o Peru começavam a despontar como países produtores de cacau fino. Em 2009, o produtor baiano João Tavares, ganhou seu primeiro prêmio internacional de qualidade, em Paris, o que confirmava nosso potencial. Na Cabruca, o foco do nosso trabalho eram os pequenos produtores, em fazê-los se interessar em produzir cacau de qualidade. Em certo momento, me perguntei: e agora? Pra quem vender? E por quanto? Eu tinha uma limitação, eu não entendia de mercado, minha competência era técnica. Entre 2014 e 2015, encontrei por acaso meu colega de mestrado em qualidade, o Cristiano Vilela, que havia saído da Mars Cacau, e que, na época, era responsável pela estação de pesquisa em Barro Branco, da multinacional e tinha acabado de se desligar. Ele perguntou se eu gostaria de participar e eu respondi que sim, se fosse um laboratório de qualidade. O sonho virou realidade apenas quatro meses depois e juntou-se a nós o Samuel Saito, químico, doutor (atual gerente de qualidade do CIC).
Grão Especial – de onde vieram os recursos para montar o CIC?
Adriana Reis – Os recursos para a empreitada vieram por meio da ONG Arapyaú, www.arapyau.org.br, fundada por Guilherme Leal, (empresário ex-sócio da Natura, candidato a vice-presidente pelo Partido Verde, na chapa de Marina Silva em 2010), voltada ao desenvolvimento rural sustentável. Não sei se Guilherme, na época, já tinha ideia em criar a Dengo, www.dengo.com.br, que, efetivamente nasceu em 2017. Mas ele apostou na nossa ideia que era a de criar uma instituição neutra para analisar com transparência e confiança a qualidade do cacau produzido no Brasil, principalmente, no sul da Bahia. Na sequência, juntou-se ao projeto o Ernesto Neigebauer, que na época era sócio da Harald, www.harald.com.br, uma das líderes em confeito de chocolates no país.
Grão Especial – E como o CIC se mantém hoje em dia?
Adriana Reis – Com o suporte dos fundadores e, também, com as análises dos lotes de cacau. Em realidade, temos dois tipos de clientes: o produtor de cacau que compra nossos serviços para entender o que está produzindo e como pode melhorar. E o outro é quem compra cacau, o chocolate-maker, que precisa de um laudo de certificação do cacau que está comprando.
De uma genética ruim não se consegue fazer um bom chocolate
Grão Especial – Afinal, qual é a origem verdadeira do cacau?
Adriana Reis – Antigamente, achava-se que o cacau era originário do México, agora, os pesquisadores acreditam que o cacau é originário da Amazônia Peruana, mas precisamente da Bacia do rio Amazonas. E daí seguiu para outras bacias.
Grão Especial – Quantos tipos de cacau existem?
Adriana Reis – Quando os pesquisadores acreditavam que o cacau era originário do México, diziam que havia três tipos apenas: o Criollo, o Amelonado e o Forasteiro. Hoje, já se conhecem mais de 10 tipos de cacau.
Grão Especial – O Forasteiro é o que temos em maior quantidade no Brasil, certo?
Adriana Reis – Sim, mas no meio do caminho houve uma mudança. Por conta da doença da Vassoura de Bruxa, os pesquisadores trouxeram cacau de Trinidad Tobago e, por meio de diversos estudos de melhoramento genético, produziram variedades mais resistentes e com maior produtividade. Atualmente, essas variedades também se mostraram positivas para produzir cacau de qualidade. Muitos desses clones se destacam pelas notas cítricas e frutadas. Mas estes também não perdem nada para o cacau Forasteiro ou Amelonado, o tradicional cacau do Brasil, que pode ser considerado bulk (comum), devido ao alto amargor. Mas, quando bem fermentado possui uma acidez atrativa e uma boa nota no atributo cacau.
Grão Especial – O consumo de cacau fino no Brasil aumentou significativamente, principalmente por conta do crescimento do mercado de Bean to Bar. Quais os estados que mais produzem cacau no país atualmente?
Adriana Reis –
Hoje, a Bahia e o Pará dominam a produção de cacau no Brasil, seguido pelo Espírito Santo. E o cultivo de cacau fino está crescendo muito em áreas não tradicionais como Sergipe, Ceará, Pernambuco, Goiás, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Na Bahia, migrou também para a Chapada Diamantina e Barreira da Bahia. Em São Paulo, inclusive, existem fazendas desenvolvendo processos mecanizados, e algumas delas vêm fazendo um trabalho interessante com fermentações.
O Pará é um capítulo a parte, vem despontando como uma grande origem dentro do Brasil. É um cacau com potencial para qualidade muito grande. É um terroir muito específico, origens muito antigas, como a de Mocajuba. Algumas variedades estão em áreas alagadas, é o que chamamos de cacau selvagem (leia matéria sobre Luisa Abram). No ano passado, inclusive, durante o Festival do Chocolate do Pará, foi realizado um concurso de melhores amêndoas pela CEPLAC (Comissão Executiva de Planejamento da Lavoura Cacaueira), onde participei como jurada. O resultado foi surpreendente: as amêndoas de Mocajuba chamaram a atenção pelo tamanho, brilho e sabor do cacau. O Pará é um estado muito grande, ainda não se conseguiu chegar em todos os lugares. É tudo muito longe, distante, difícil, por isso, fizemos o concurso, para tentar descobrir essas origens exóticas, de cacau fino, pouco acessível.
Grão Especial – O que é preciso para se ter um cacau de qualidade superior?
Adriana Reis – Tem que ter um ótimo terroir. Tem a ver com o clima, umidade, altitude e, principalmente, com a qualidade de água e insolação.
Grão Especial – Quando você fala de terroir do cacau, é o mesmo conceito para o vinho e café? Qual é o terroir ideal de acordo com os seus estudos?
Adriana Reis – Sim, é a mesma coisa. De acordo com os meus estudos é necessário ter solo profundo, uma boa quantidade de água por dia – o cacau demanda muita água -, bom solo, boa incidência solar, clima quente e úmido, além de toda a parte de manejo e das boas práticas. É uma planta que exige muito, laboriosa, é preciso podar, adubar, fazer limpeza, roçagem, seguir o calendário agrícola. É trabalho que não acaba mais.
Grão Especial – Além do cacau brasileiro, de qual você mais gosta?
Adriana Reis – Gosto muito do cacau brasileiro, mesmo, de coração! Os lá de fora eu gosto do de Madagascar, tem um frutado muito próximo ao nosso, eu gosto muito dos frutados. Gosto dos de Trinidad Tobago, de Belize, mas, meu queridinho no momento é o do Vietnã. Em novembro, estive na Semana Internacional do Chocolate, em Paris, e trouxe uma sacola cheia deles, que estou devorando na quarentena. São frutados também, como os nossos, mais é um cacau suave, equilibrado, muito interessante.
“Nós temos que mostrar ao mundo nossos sabores únicos”
Grão Especial – Existe uma roda de sabores do cacau universalmente aceita, assim como acontece com o café?
Adriana Reis – Infelizmente, não! E isso é uma grande dificuldade. É um desafio que a cadeia do cacau tem que vencer. Não existem regras de qualidade internacionais, cada país faz a sua. E, portanto, existem várias rodas de cacau e diversas metodologias de sensorial de chocolate.
Existe um organismo internacional, o ICCO, The International Cocoa Organization, mas não atua como a SCA, Specialty Coffee Association, que tem uma roda própria de sabores do café e é utilizada no mundo todo, nem uma tabela de avaliação de qualidade.
No SIC, decidimos por seguir a roda de sabores criada por Edward Seguine (Seguine Cacao, Cocoa, and Chocolat Advisors US), especialista em cacau, nome forte por trás de diversas marcas de chocolate, entre elas, a americana Guittard Chocolate. Ele é praticamente um “nariz eletrônico”, e de Darin Sukha, pesquisador da Universidade West India, responsável pelo banco de Germoplasma de Trinidad Tobago, o maior do mundo. Eles são responsáveis por painéis estragégicos de cacau fino no mundo. Seguine é um dos líderes do painel da ICCO e era importante para o Brasil aparecer dentro da lista da entidade de produtores de cacau fino do mundo. E Darin participa do painel de Paris, o COEX, www.cocoaofexcelence.org, que é a metodologia que adotamos para as nossas análises sensoriais.
O COEX realiza o concurso mundial de cacau de Excelência, que acontece a cada dois anos dentro do Salão do Chocolate, realizado em Paris. Nós adotamos esta metodologia porque queremos estimular que o Brasil ganhe mais prêmios internacionais de qualidade de cacau e que isso possa atrair o mercado comprador.
Seguindo esse entendimento, lançamos em 2018, um concurso nacional de qualidade do cacau, seguindo o mesmo formato que o de Paris. Já estamos na segunda edição e a ideia é a de justamente buscar onde são produzidos os melhores cacaus do país, que perfil sensorial eles possuem e qual é o volume dessa produção. A partir desses dados, podemos criar um marketing estratégico, valorizando esses produtos e auxiliando os produtores a encontrar mercados especiais.
Grão Especial – E, de maneira prática, como aplicar isso na produção de cacau fino?
Adriana Reis – Tentando enxergar o que a ciência internacional diz de qualidade e encaixar isso dentro do país.
Grão Especial – Como é treinar esses produtores para entender um pouco essa roda de sabores? Seu desafio é muito grande, não?
Adriana Reis – Nosso desafio é muito grande! Nesse momento, estamos tentando estabelecer uma metodologia para trabalhar com amostras de cacau e não de chocolate. Nosso foco é fazer com que os produtores reconheçam os principais defeitos presentes nas amêndoas de cacau. O defeito é o que derruba hoje, nosso produtor nos concursos internacionais. Pode ser um erro na fermentação, na colheita na secagem, tudo isso pode gerar um off flavour e que vai aparecer na barra de chocolate. Então, o primeiro passo é ele reconhecer o que é ruim. O que é acidez exagerada, como reconhecer o gosto de fumaça, de borracha queimada, de coco queimado, o que é acidez mineral, que são notas que depreciam o nosso cacau e que conseguem ser corrigidos em processos, em manejo.
Na sequência, nosso próximo passo será o de fazer eles entenderem o que é bom, e aí é trabalhar as referências positivas. É fazer o produtor entender o que é fruta marrom, o que é a fruta cítrica, o que é nota de flor, de amendoado, referências sensoriais que são atributos positivos. E também o que é uma boa nota de cacau, o que é uma acidez equilibrada, o que é adstringência, o que é um cacau com baixo amargor. E fazer o produtor do Pará também fazer isso e começar a trocar essas referências entre todos os produtores do país, para que consigam identificar os diferentes Terroirs do Brasil.
“Meu sonho é o de caracterizar um mapa sensorial brasileiro focado nas nossas identidades”
Grão Especial – De qualquer maneira, você ainda tem muito trabalho na primeira fase, certo?
Adriana Reis – Muito. Montamos um curso que engloba três níveis e, esse ano, só daremos os dois primeiros. Iniciamos pelo reconhecimento de defeitos e, depois, nas qualidades. Por causa do Coronavírus, as datas desses cursos estão suspensas, mas a ideia é fazer um curso desses por mês.
Grão Especial – Como você descreve a evolução do mercado de cacau fino brasileiro?
Adriana Reis – A gente hoje se inspira no mercado de cafés especiais. Com o cacau é igual. É preciso focar nos mercados especiais, capacitando nosso pessoal para atuar no topo da cadeia, nos nichos mais sofisticados. E isso só se faz com conhecimento. Mas, voltando à sua pergunta, vejo uma grande evolução com o cacau acontecendo. Não sei como vamos nos comportar depois do Coronavírus, mas chegamos em um ponto onde as empresas estão pagando prêmios pela qualidade do cacau, e isso é um estímulo para toda a cadeia. Por sua vez, os produtores estão cada vez mais motivados em produzir cacau de qualidade.
O atual produtor de cacau no Brasil é muito diferente do de outros lugares do mundo. Têm uma condição especial, são esclarecidos, tiveram condições de estudar, ou os filhos dos trabalhadores estudaram, têm história na fazenda. O Brasil, a meu ver, é líder em tecnologia de cacau. Muita gente do mundo vem aprender sobre cacau aqui. E Isso é muito favorável, pois temos pesquisa, rede, logística.
“Mais importante do que o mundo dizer o que é bom, é o Brasil dizer o que é bom!”