A fábrica sustentável foi instalada no meio da Floresta Amazônica
A Danke (www.dankecacau.com.br), cuja tradução é obrigado em alemão, é uma nova marca de chocolates que já nasce com mais de 130 anos de história. Ernesto Neugebauer, seu fundador, veio de uma família de mestres chocolateiros. Seu avô, já trabalhava com chocolates em Dresden, na Alemanha e, ao imigrar para Porto Alegre, construiu a primeira fábrica de chocolates do Brasil, a Neugebauer em 1903, munida de maquinários à vapor, provenientes da Europa. Toda a família trabalhava na fabricação dos chocolates, incluindo Ernesto que, aos 18 anos, antes mesmo de entrar na faculdade, já tinha se apaixonado por esse universo doce.
Muito tempo depois, em 1982, Ernesto fundou com seu pai e irmãos a marca Harald (cujo segmento é o de barras, bases e coberturas para confeitarias e restaurantes) que presidiu por 38 anos. Até que, em junho de 2020, no meio da pandemia do coronavírus, começou sua mais nova aventura no mundo dos chocolates, inaugurando a Danke.
A empresa já nasceu com uma forte preocupação com a sustentabilidade de toda a cadeia e, por isso, construíram em Altamira, no Pará, em plena exuberância da Floresta Amazônica, sua unidade fabril, pertinho dos mais de 100 pequenos agricultores familiares que fornecem cacau para a Danke, permitindo 100% de rastreabilidade. As caldeiras da fábrica são movidas a biomassa, o que reduz a emissão de carbono na atmosfera.
Entrevistamos com exclusividade para o Grão Especial o CEO Ernesto Neugebauer, acima de tudo, um apaixonado pelo chocolate. Leia a seguir:
Grão Especial – Vocês têm fazendas de cacau na Bahia e no Pará. Por quê resolveram construir a fábrica no meio da Floresta Amazônica?
Ernesto Neugebauer – Sem querer desmerecer a produção de cacau da Bahia mas, na minha opinião, o futuro do cacau está indo lá para o Pará. Acho que não só no Brasil mas em nível global (produções mais perto da linha do Equador). Nós temos muitas áreas para crescer e o sul do Pará é enorme e têm muita terra que se tornou pasto, destruíram a Floresta. O cacau pode ajudar a recuperar esses locais. O cacau é uma cultura muito especial, já que a sua árvore é uma espécie de sub-bosque, com folhas largas e grandes, é uma planta desenhada para crescer na sombra. Também não tolera vento e, se estiver dentro de uma floresta, está protegida, também do stress hídrico. Ou seja, na floresta, o cacaueiro encontra um bioma adequado, já que pede um ambiente de solo fértil.
A gente enxerga isso no Pará. O cacau bem conduzido é muito mais rentável que a pecuária, que a soja. Não é a salvação do mundo, não existe cacau suficiente no mundo para recuperar tudo o que já foi desmatado, mas…
O Brasil tem espaço para ser o maior produtor de cacau do mundo. Hoje, somos o quinto ou sexto só!
Grão Especial – Quando exatamente a Danke começou a nascer?
Ernesto Neugebauer – Foi a partir de 2000, antes eu estava muito focado em consolidar a Harald. E aí eu comecei a ver a invasão dos chocolates belgas no Brasil e isso me dava uma dor no coração. O Brasil é o país que reúne tudo de melhor para termos excelentes chocolates: temos cacau, somos o terceiro maior produtor de leite em pó, somos um grande produtor de açúcar, temos uma condição rara. Aqui é a terra do chocolate! Temos todas as matérias-primas de sobra, tudo num lugar só. Isso não existe em nenhum outro lugar no mundo!
Então, ficava muito impactado com essa situação e decidi que ia fazer chocolate. Antes disso um pouco, em 1988, fui para a Bahia visitar algumas fazendas de cacau que já estavam fazendo um ótimo trabalho com relação à qualidade. Visitei a fazenda Leolinda do João Tavares, o Vale Potumuju, da Juliana Aquino, da Baiani (ver matéria aqui), o Nick, e vi que esses produtores estavam produzindo cacau de excelente qualidade. Quando provei o cacau deles fiquei em êxtase: era o chocolate da minha infância, veio o paladar da minha infância.
Não tem segredo, para se fazer um chocolate bom tem que ter um cacau com baixo amargor, um cacau suave, com uma acidez muito equilibrada. E a nossa missão na Danke é fazer o melhor chocolate do mundo, mas não para meia dúzia de pessoas. Queremos fazer isso para termos um consumo democrático, por um preço acessível.
Grão Especial – Escala, para a Danke, não é um problema?
Ernesto Neugebauer – Escala não é um problema, é um desafio. Mas ser de nicho não é bom para o consumidor. A gente não tem pressa de crescer, mas não queremos perder tempo também. A nossa preocupação é a qualidade. No começo do ano passado, fizemos uma pesquisa com os pequenos produtores de cacau que estão perto da nossa fábrica no Pará e, a grande maioria, respondeu que trabalhava com cacau de qualidade. Mas quando as amêndoas chegaram na fábrica, vimos que não atendiam nossas exigências. Nesse sentido, a pandemia nos ajudou a criarmos uma base de produtores de cacau de excelente qualidade.
Grão Especial – Como você descreve os chocolates da Danke?
Ernesto Neugebauer – Nosso chocolate ainda não é complexo. Estávamos muito preocupados em acertar o ponto de torra do cacau, essa foi nossa primeira missão. Para aquelas pessoas com um paladar mais apurado, vão achar nosso chocolate suave. Mas meu sonho é trabalhar com novas técnicas de fermentação, fazendo um blend de variedades, que agrade o paladar médio do brasileiro, mas que nos possibilite levar uma maior complexidade de sabor ao chocolate. Hoje em dia, o cacau é fermentado e só esse assunto dá uma semana de entrevista! O que fazemos hoje na fermentação do cacau no Brasil, é o que se faz na fermentação de um vinho de garrafão. Muitas famílias produzem o vinho há três, quatro séculos. O cacau é fermentado há menos de 80 anos, rusticamente, sem controle nenhum no Brasil. A gente ainda não se dá ao trabalho de dividir as espécies de cacau como se faz com a uva. E cada tipo de cacau tem uma fermentação diferente, como a uva. Nesse sentido, acho que a cultura do cacau é muito mais parecida com a do vinho do que com o café. Café também fermenta! Mas a fermentação do cacau é essencial porque é nessa fase que se formam os precursores dos aromas nos chocolates! Quando não têm esses elementos bioquímicos dentro dessa semente bem formada, eles não vão existir na torrefação das amêndoas. O cacau tem que ser fermentado de uma maneira muito apropriada, controlada, com fermentação alcoólica, asséptica. A secagem tem que ser apropriada, já que ela continua existindo dentro do grão, assim como a maturação.
As amêndoas têm que secar no sol por 7 a 15 dias, é essencial esse processo, pois os bichinhos (da fermentação) trabalham no conforto. Na secagem e maturação as reações químicas continuam acontecendo. No primeiro dia, o cacau tem que soltar sua acidez, mas não pode ser nem muito devagar, nem muito rápido. Se for muito devagar, mofa. E, se for muito rápido, fica ácido. Tem que ser revolvido três, quatro, cinco dias, absorvendo a umidade da noite, o calor do sol! Enfim, esses são conhecimentos muito pouco difundidos dentro da cadeia do cacau. Tem muito chocolateiro que não conhece esses processos. Não conhece direito o que é a reação de Maillard, que ocorre no torrador.
O pessoal do chocolate Bean to Bar é que está trazendo esse conhecimento. Mas ainda é difícil para a grande produtora usar. É um momento de inflexão para o nosso mercado. Gosto muito do que o pessoal da Chocolat du Jour está fazendo, da Mendoá, eles estão puxando as inovações. As grandes vêm atrás, como aconteceu com as cervejas artesanais. É preciso mudar a cadeia, o consumidor está pedindo isso. Precisamos trazer conhecimento para toda a cadeia do cacau e dar escala!
Grão Especial – depois de um ano, quantos funcionários a Danke têm?
Ernesto Neugebauer – Éramos 100, mas já passamos dos 110, nesse momento.
Grão Especial – E aconteceu tudo o que você previa nesse primeiro ano de produção?
Ernesto Neugebauer – Não, de jeito nenhum. Tudo errado, 2020 foi um ano muito difícil pra nós. Tivemos que afinar a estratégia, assegurar a cadeira de fornecimento de cacau de qualidade, não tínhamos experiência no varejo, éramos desconhecidos nos supermercados, não conseguíamos estabelecer contato com as grandes redes. Até que conseguimos vender a marca Danke no Santa Luzia, no San Marché, marcas muito fortes. E, então, as portas se abriram no Pão de Açúcar, no Carrefour, no Big, no Festval, no Záfari. Estamos muito felizes.
Grão Especial – E o mercado externo?
Ernesto Neugebauer – Olha, já estamos recebendo algumas propostas mas não imagino exportar nos próximos cinco anos. Enquanto tiver chocolates importados vendendo em postos de gasolinas, temos muito o que fazer no mercado interno.
Grão Especial – Preço foi problema?
Ernesto Neugebauer – Preço não foi problema. O mais difícil, como eu disse antes, foi sermos desconhecidos. Também, fizemos uma opção em não usar plástico, o mercado não valoriza. Só usamos plástico de origem vegetal, custa mais caro. Na nossa primeira Páscoa, desse ano, não usamos plásticos na nossa embalagem e estamos trabalhando para eliminá-lo em toda a nossa fábrica.
Grão Especial – Vão usar ingredientes do bioma brasileiro nos produtos?
Ernesto Neugebauer – Sim, claro! Tenho um grande sonho em usar a castanha da sapucaia, que é nativa e que quase foi dizimada. Estou plantando na nossa fazenda na Bahia, só que demora um pouquinho pra ela crescer. A qualidade da sua castanha é fantástica, tem pouca carga oleosa, ela é mais leve, sem dúvida será nosso primeiro novo produto. Quando eu trabalhava na Neugebauer, o ex-presidente Getúlio Vargas adorava esse chocolate. Fazia a filha, Darci Vargas, telefonar pra gente pra encomendar uma caixa de bombons com castanha de sapucaia. E a gente ia lá no Palácio do Catete, sede do Governo Federal, na época, entregar a caixinha de bombons! E, hoje, infelizmente, ninguém mais conhece.
O próximo chocolate será feito com castanha de caju do Pará, depois o Baru, mais pra frente a semente de Pequi, muito mais saborosas que o avelã e amêndoa. A variedade de castanhas no Brasil é enorme.
Grão Especial – Como mudar a percepção do mercado externo quanto à qualidade do cacau brasileiro?
Ernesto Negebauer – Você tocou num excelente ponto. Construir credibilidade é mais demorado. Já tivemos uma grande produção de cacau de qualidade no Brasil. Piorou muito nos últimos 40 anos e, agora, vemos um renascimento da preocupação com a qualidade. Vemos grandes produtores como João Tavares, a fazenda Panorama, no Pará, seu Nenê, também no Pará, enfim, vamos recuperar o tempo perdido.
Grão Especial – E o que você espera do que resta de 2021?
Ernesto Neugebauer – Olha, nos saímos bem até agora. Mas a pergunta é: “o que cabe nesse mundo novo? Qual é a nossa missão? Temos muito claro que não podemos esperar mais nada do Governo, temos nós, iniciativa privada, que criarmos riqueza. Temos que tratar melhor das coisas. Sou totalmente contra chocolate importado no Brasil. Temos que trabalhar para que o cacau, o chocolate brasileiro, seja relevante para a economia brasileira. São 60 mil produtores de cacau e 97% deles são de pequenos agricultores familiares. Temos que privilegiar o chocolate brasileiro, o produtor de cacau, pagando preços justos e tratando-os com o devido valor! O segredo do bom chocolate está neles, nos produtores, não em nós.
As grandes empresas estão tentando mudar essa dinâmica tão perversa de pagar mal ao produtor. Mas elas pecam pelo seu gigantismo e seus discursos de sustentabilidade ficam só na comunicação. Elas nem têm relatório de sustentabilidade, só balanço. Ficam revisando, postergando, de 2025 pra 2030, (ver matéria sobre trabalho infantil na lavour a de cacau aqui) não conseguem se desvencilhar do sistema. Pagam mal o produtor, utilizam trabalho infantil na lavoura do cacau. São dois milhões de crianças trabalhando nas lavouras de cacau no mundo! Dois milhões! Só vai melhorar quando doer no bolso do acionista. Conheço um monte de executivo bacana, bem-intencionado, dessas multinacionais. Mas ficam pintando parede nas escolas e dizendo que são sustentáveis. E isso é ruim pra todo mundo. Perde o trabalhador, o produtor, toda a cadeia. E o consumidor têm que exigir mudanças também!
Linha Memórias
Fotos: fotógrafa Nani Rodrigues