Elizabete Ume Shimada: aos 92 anos, continua fazendo planos para melhorar sua produção de chás especiais

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Elizabete Ume Shimada

Sua marca, Obaatian, em japonês, Chá da Vovó, criada há apenas quatro anos, é a única, no Brasil, dedicada à produção de chás especiais.

A princípio era para ser apenas mais uma dentre tantas matérias que produzimos no Grão Especial. Mas, a visita ao sítio Shimada, em Registro, a 180 quilômetros da capital, foi muito especial. Lá, pudemos conversar longamente com a brasileira, descendente de japoneses, Elisabete Ume Shimada, que, aos 87 anos, resolveu lançar sua marca de chás especiais, Obaatian, e em apenas cinco anos, já é um sucesso internacional. “De longe, é o melhor chá preto produzido no Brasil”, afirma a sommelier de chás, Carla Saueressig, a maior especialista do assunto no Brasil

Certamente a sua trajetória é uma linda lição de vida e, quem tem o privilégio de conhecê-la, tem também a obrigação quase religiosa de a repassar ao maior número de pessoas possíveis. É isso que vamos tentar fazer aqui.

Com sua vitalidade e lucidez, ela nos contou ao longo de uma tarde de sábado suas histórias de empreendedorismo, superação, fé e muito otimismo.

O Brasil já foi um grande produtor de chás

Apesar de que pouca gente sabe, mas, no século passado, o Brasil já foi um produtor de chás relevante no cenário internacional, graças à influência dos imigrantes japoneses.

Havia inúmeros produtores, que se concentravam na cidade de Registro, conhecida como a capital do chá no Brasil.

Inicialmente nos anos 70, eram 40 fábricas de chá, 1.500 produtores e uma produção de cerca de 10 mil toneladas por ano. Nos anos 90, a qualidade caiu, em parte graças à euforia dos produtores em exportar. Em virtude disso, rapidamente, a China e a Índia, tomaram o espaço que antes era ocupado pelo Brasil no mercado internacional.

Então, quando foi decretado o Plano Real, com a equiparação do dólar à moeda local, exportar tornou-se inviável e, uma a uma, todas as fábricas fecharam, exceto a Amaya, a única que sobrevive até hoje.

As plantações de chá da região de Registro foram dizimadas e trocadas por banana e pupunha, entre outras culturas.

Placa de inauguração da fábrica.

Placa de inauguração da fábrica.

O chá e os Shimada: tudo começou com o pai

O pai e a mãe de Ume Shimada chegaram do Japão, vindos da cidade de Fukushima, em 1934. Segundo Ume, eles não precisavam vir, já que trabalhavam na produção da seda. Mas como a propaganda do governo japonês era muito convincente, decidiram imigrar.

Assim que chegou, seu pai foi designado para trabalhar numa fazenda de café, no interior de São Paulo. Mas, como nunca tinham visto um pé de café na vida, ele e seus patrícios, quando foram colher, deixaram todos os frutos no pé e colheram só algumas folhas, como se faz com o chá.

“O patrão ficou muito bravo. Mas, como eles não entendiam a braveza do patrão, por conta da língua que não dominavam, o episódio não deu em nada. Meu pai trabalhou nessa fazenda por três anos”, relembra Ume.

A ida para a cidade de Registro

Em virtude de as condições serem ruins no trabalho, fugiu para Registro numa carroça, “tocada por oito cavalos”, Ume faz questão de frisar. E começou a trabalhar plantando cana, fazendo pinga e melaço.

Certo dia, sofreu um terrível acidente no alambique e teve metade do corpo queimado. Foi desenganado pelos médicos. Mas um sábio conterrâneo decretou que ele tinha que tomar banho de lama. “E milagrosamente, sarou”, acredita Ume.

Começou a  plantar outras coisas, principalmente café, mas teve que desistir, por causa da broca. “Papai teve o cuidado de não queimar os pés de café, simplesmente cortou e substituiu pela camellia sinensis, a planta do chá”, diz. Isso era por volta de 1950, logo após receber umas glebas doadas pelo governo brasileiro aos imigrantes japoneses, como parte do acordo firmado entre os dois países.

As primeiras mudas de chá no Brasil vieram pelas mãos dos primeiros imigrantes chineses.

As primeiras mudas de chá no Brasil vieram pelas mãos dos primeiros imigrantes chineses.

Chá Oriente

Todos os seis filhos, ajudavam o pai, mas a assistente preferida, em se tratando do chá, era Ume. “Meu pai trouxe a semente de chá aqui para o sítio, de onde eu não sei, e semeou na areia. Esse chá brotou, colocou numas latinhas e me escolheu para catar os brotinhos do chá”, diz.

O pai de Ume iniciou o chazal e, graças às condições de clima e temperatura, deu tão certo que, em pouco tempo, a família montou uma fábrica, chamada Chá Oriente. Chegaram até a exportar o produto.

“Lembro que era muito bem feito, tudo manual. Eu era responsável em empacotar o chá em embalagens de 100 gramas. E meu pai era homem apressado, nada de moleza, tinha que fazer o que ele pedia rapidinho”, relembra. “ “Depois, ele parou com o negócio do chá e um dos meus irmãos assumiu”, explica.

Produção de seda

No entanto, como ele tinha experiência em trabalhar com o bicho da seda, chamou um irmão que ainda morava no Japão, para montar uma produção de seda no Brasil. Esse irmão veio e trouxe todo o maquinário. Mas o negócio não foi para a frente, graças a corrupção local. “Os fiscais estavam sempre contra o meu pai, multando, mesmo quando não havia nada errado. Ele ficou muito bravo e fechou a fábrica de seda. Era um tecido lindo, lembro até hoje a saia que minha mãe teceu pra mim”, lembra Ume.

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Depois de casada, uma temporada na praia

Foi então, depois do casamento, que Ume e o marido resolveram ir morar no litoral sul de São Paulo, em Itanhaém e, como tinha ganho uma máquina de costura, durante os cinco anos em que viveu por lá, seu trabalho era a costura, atividade que tinha aprendido com a irmã mais velha. “Comecei a costurar e nunca faltou trabalho. Além disso, ensinava também. Cheguei a ter mais de 11 alunos de uma vez. Dava até diploma”, lembra.

Para satisfazer suas vontades, o marido construiu uma casa grande para que funcionasse como uma escola de corte e costura. Quando ficou pronta, Ume achou que lá já não era o local ideal para oferecer educação aos seus filhos. “Frequentei colégio de freiras e fiquei pensando que, na praia, todo o mundo andava quase pelado. Não era bom para as minhas filhas”, conta.

Então, um dia, o irmão pediu para que eles voltassem para Registro, para cuidar do sítio.

Logo depois de alguns anos, começaram a plantar junco para fazer esteiras e chinelos e chegou até a comprar uma máquina para fazer tapete de metro. Conseguia produzir 11 tapetes por dia.

A vida na cidade grande

“Mas, passado algum tempo, eu já não estava muito satisfeita. Pensei: as minhas crianças estão ficando grande agora, têm que estudar em São Paulo. Numa dessas coincidências da vida, um dia, tinha ido visitar sua mãe e ouviu um dos irmãos falar que estava cansado de trabalhar na feira em São Paulo e que iria vender a barraca. Voltou correndo para casa para contar pro marido a novidade e perguntar se ele topava comprar a barraca do irmão. Topou!

“Trabalhamos, eu e meu marido, cinco anos na feira, usando um caminhão velho, que não tinha nem breque. Pensei: tô cansada de trabalhar na feira. Aí, ouvi falar que minha sobrinha tinha uma ótica e que ia vendê-la.

Resultado: influenciado pela esposa, o marido comprou a ótica.

Consequentemente mudaram para a mesma casa onde ficava a ótica. “Mas eu tinha que atender na ótica e fazer o trabalho de casa. E o meu marido, ficava lá, vendo TV. Eu falei que a gente tinha que arranjar outro serviço”, conta. Ume resolveu socar moti (bolinho de arroz japonês) e levaram na loja Oriente, na Liberdade, para vender. “A turma adorou e não parou mais de encomendar. O moti deu bastante dinheiro para nós, conseguimos construir uma outra casa no sítio”, relembra.

Chegou a ter quatro máquinas de moti e entregava o produto com um carrinho de feira. Mas outros japoneses e descendentes também começaram a produzir o moti, a concorrência começou a apertar e o negócio deixou de ser tão lucrativo. Mas até hoje, seu moti é lembrado!

A volta para o sítio

Logo, o marido resolveu voltar para o síto que, naquela época, estava arrendado. E Ume continuou em São Paulo por um tempo. Então, depois de vender todo o estoque de moti voltou para o sítio.

Assim quando chegou, achou tudo bagunçado, e disse para o marido que só ficava se eles reformassem a propriedade. Em primeiro lugar começaram pelo galinheiro, depois construíram uma cozinha quase industrial. Nessa época, trabalharam na colheita do chá que era toda vendida para uma fábrica local.

Plantação de Lichia

Numa comemoração de ano novo, a filha caçula trouxe uma fruta diferente e Ume adorou. Na mesma semana, foi até à loja de produtos agrícolas Oliveira Barros para ver se tinham mudas de lichia para vender. Comprou trezentos pés.

O vendedor jurou que, em três anos, a lichia já ia estar produzindo bastante. Passados cinco anos, nada de lichia. Ligou para o comerciante e passou o maior pito. “Você é muito mentiroso, disse que ia dar fruto depois de três anos. Até agora, nada. Vou cortar tudo”.

Não foi preciso. Naquele ano, os pés ficaram carregados de lichia, os galhos até caíam de tão pesados. Resolvido um problema, Ume tinha, agora, outro. Como ela ia vender a produção? No Brasil, ninguém conhecia lichia, originária da China. “A gente oferecia e ninguém queria. Eles achavam que era um morango duro! Ninguém dava valor. Resolvemos vender nos faróis da Vila Mariana. Mas, como ninguém conhecia, acabávamos dando para as pessoas experimentarem”, conta.

Utilizando um caminhão baú, devagarinho começaram a entregar nos pequenos supermercados da região e, com bastante esforço, a lichia caiu no gosto popular.

Como uma autêntica pioneira, foi a primeira a plantar lichia no Vale do Ribeira. Com o sucesso da produção, Ume teve que encarar um outro problema: segurança. Durante a safra, ladrões invadem a propriedade para pegar a lichia. Precisam pagar um guarda particular dia e noite. “Que governo que nós temos”, pergunta?

Apesar dos problemas, a lavoura da lichia é um sucesso, já tem mais de 20 anos e é totalmente orgânica.

Como recomeçou sua história com os chás

Os chás de Ume eram todos todos comprados pela fábrica Amaya. Mas, com a crise, a empresa desistiu de comprar seus brotos. Ficou arrasada, chorou, não sabia o que fazer.

Como não havia mais mercado, resolveram parar de colher por 12 anos, tempo suficiente para que o chazal fosse todo tomado pelo mato, principalmente por um tipo de cipó que cobre o pé desde a raiz.

“Meu filho, que mora no Rio Grande do Sul, veio me visitar num final de ano e me ajudar a colher as lichias. Ele resolveu visitar o chazal e, na volta, encontrou com um amigo japonês, o Tomio Makiuchi, que perguntou de quem era o chazal.

Obaatian - Chás especiais

Do chazal, saem os melhores chás pretos dos Brasil.

Um achado no ferro velho da cidade

Tomio era uma espécie de professor Pardal de Registro e avisou a família que tinha encontrado num ferro velho da cidade, duas máquinas de enrolar as folhas de chá, essenciais para a fabricação, mas que precisavam ser recuperadas.

Ume foi ver as máquinas no ferro velho e achou que Tomio era meio louco. Elas estavam em péssimo estado. Ela não acreditou, mas o japonês estava sempre animado. “Compra que eu arrumo”, dizia Tomiko. O dono do ferro velho fez um desconto e Ume comprou as máquinas.

Tomio recuperou o maquinário em seis meses de trabalho. E, enquanto ele arrumava as máquinas, as famílias, juntamente com três estudantes voluntários de escolas da região, limpavam o chazal, com a mão, “rastejando que nem jacaré”, relembra. “Eu mesma matei duas cobras venenosas. Foi um sufoco para limpar os pés de chá. Mas deixamos tudo bonitinho”, relembra.

Todo o processo é artesanal, que tem início na colheita manual, onde são selecionados apenas o broto e as duas folhas mais jovens. O resultado é um chá preto de cor âmbar, com corpo e uma suave adstringência, com aroma de mel e malte e sabor que lembra frutas como lichia, pêssego e damasco.

Obaatian - Chás especiais

Fábrica de chás Obaatian.

Obaatian, o Chá da Vovó

Em 1o. de novembro de 2014, foi inaugurada a fábrica que se chamava apenas chá preto do sítio Shimada. Só mais tarde é que virou o internacionalmente famoso, Obaatian, o Chá da Vovó.

No dia da inauguração, um amigo experimentou o chá e se propôs a ajudar a família a comercializá-lo. Levou o chá ao jornal Asahi Shimbum, principal jornal da comunidade japonesa fora do Japão, e quarto dentro do país. Gostaram da história e fizeram uma reportagem emociante sobre os chás Obaatian. E a história de Ume e de seu chá se espalhou por toda a colônia japonesa em diversos países. E mais que isso: sua história chamou a atenção de empresários do Japão, que a convidaram em 2015 para contar como foi o processo de recuperação da plantação em um evento internacional sobre o produto, o Japanese Black Tea Festival.

Reconhecimento Internacional

Ume voltou lá em 2016 e 2017 e até já recebeu a visita do principal plantador de chás pretos do Japão, Hirosato Goto. “Ele ficou quase um mês aqui e sua visita foi muito importante para nós, uma vez que nos ensinou muita coisa”, conta.

Hoje, a filha Teresinha Shimada é responsável pela colheita, juntamente com mais 10 colaboradores. São 30 mil pés de camellia sinensis, tratados organicamente e colhidos manualmente. Ume, por conta de uma dor nos membros inferiores, não consegue mais participar da colheita. Mas que ninguém duvide: continua ativa em todo o restante do processo. “É ela quem manda aqui”, diz o genro, Aurelino Ferreira Cruz, o Léo, o agrônomo da família. E alguém tem coragem de duvidar?

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A produção do sítio Shimada é de 450 quilos de chá ao ano, um negócio que deve faturar, até o final de 2018, algo como R$ 150 mil. No momento, estão colhendo também uma pequena produção de chás brancos que, em breve, estarão disponíveis na loja recém-inaugurada na Aclimação.

Já exporta para o Japão, Inglaterra, Canadá e o maior desejo de Ume, no momento, é que a rainha Elizabeth, da Inglaterra, receba seu chá no Palácio de Buckinghan e se torne fã.

O dia a dia

Ume continua acordando de madrugada, por volta das 3h30, todos os dias. “Acordo, rezo, peço a Deus que me dê muitos anos de vida, porque ainda tenho muitos planos. Eu adoro viver, viu? ”, expressa. Depois faz sua ginástica diária, toma seu cafezinho sem pressa, faz um pouco de crochê e … pronto. Agora é hora de trabalhar. Vai plantar suas mudinhas, que pelas suas contas já ultrapassaram a marca de 17 mil, encerrando um ciclo que começou do mesmo jeito, lá atrás, ajudando o pai quando ainda tinha cinco anos.

Obaatian - Chás especiais

Primeiros chás brancos da Obaatian.

A loja – Obaatian

Em 1o. de maio desse ano, o neto Swan Yuki Hamazaki, considerado braço direito dela, abriu uma loja de chás, Obaatian – o chá da Vovó, www.obaatian.com.br ao lado da ótica da família, na Aclimação, em São Paulo, hoje sob a direção da outra filha.

Yuki foi responsável pelo design, logomarca e embalagem do chá Obaatian. Na loja, é possível comprar pacotinhos de chá de 50 e 100 gramas, além de diversos acessórios para preparar a bebida.

Estão nos planos de Yuki vender blends de chás preto e branco, que deverão ser produzidos pela sommelier de chás, Carla Saueressig, a maior especialista no assunto do Brasil.

Obaatian - Chás especiais

Os Shimada e equipe do Grão Especial: adivinha quem era a mais animada?

Fotos e vídeos: Clodoir de Oliveira

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