Especialistas advertem para o consumo de cafés com torra Extra-Forte, que geralmente utiliza café de varrição, de péssima qualidade, mais suscetível ao desenvolvimento da Ocratoxina A, uma substância com possíveis efeitos cancerígenos. Pesquisadores da Universidade Federal de Lavras (UFLA), em Minas Gerais, estão trabalhando para desenvolver outros usos para esses cafés, como produção de cachaça, xarope microbacteriano e combustível de biomassa, com o objetivo de garantir a renda do produtor e salvaguardar a saúde dos consumidores brasileiros.
A preocupação com a qualidade da nossa alimentação vem crescendo ano após ano, inclusive por meio de um consumo mais consciente, de alimentos naturais, livres de agrotóxicos, e do impulso de movimentos como veganismo, vegetarianismo e da diminuição do consumo de doces e refrigerantes.
Na contramão desse movimento, o café industrializado – aquele que é vendido nos supermercados – pode conter uma substância cancerígena chamada Ocratoxina A (OTA), resultante de algumas espécies de fungos filamentosos. Soma-se a isso a resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Anvisa, (RDC número 7 de 18 de fevereiro de 2011), estabelecendo limites máximos tolerados (LMT) para micotoxinas em alimentos. Para o café torrado e moído, permite 60 fragmentos de insetos a cada 25 gramas.
E o que isso significa para a sua saúde? Para entender mais sobre o assunto, entrevistamos Luís Roberto Batista, professor de Microbiologia de Alimentos da Universidade Federal de Lavras (UFLA), que está liderando pesquisas em torno da utilização de cafés de varrição para outros fins que não alimentares, salvaguardando a saúde dos consumidores e com a especialista em cafés especiais e coffee hunter, Moni Abreu, que deu dicas preciosas para a escolha do café.
Entrevista com o professor de microbiologia de alimentos da UFLA, Universidade Federal de Lavras, Luís Roberto Batista. Confira:
Grão Especial – O que é a Ocratoxina e como ela se forma? Durante a torra, existe um processo onde é liberada a substância?
Luís Roberto Batista (UFLA) – A Ocratoxina A é uma toxina produzida por algumas espécies de fungos. Quando a broca do café faz as galerias no grão de café, ela leva no dorso os próprios fungos, que vão servir de alimento para as larvas. E, às vezes, esses fungos vão se desenvolver no interior dessas galerias e podem produzir a toxina. Nesses grãos que contém a broca, vamos encontrar também a toxina e fragmentos de insetos. Mas, quem produz a toxina, são algumas espécies de fungos que, normalmente, estão relacionados com a qualidade do café. Esses fungos, quando se desenvolvem no café, produzem algumas enzimas que deterioram o grão, alterando-o, tanto na superfície quanto no seu interior.
Dependendo do tipo de torra do café e da granulometria da moagem, podemos ter mais ou menos dessa toxina. E, durante a torra, parte dessa toxina – que é uma estrutura química, onde metade é um aminoácido cumarina e a outra metade é uma estrutura fisiocumarina -, normalmente essa molécula se quebra, e se formam substâncias que não são tóxicas para os seres humanos. Parte dessa toxina vai se ligar a outros compostos do café durante o processo da torra. Uma parcela vai ser degradada com a própria parte física do café, que sai pela fumaça, durante a torra.
Agora, tem uma outra parte da toxina que permanece no café durante a torra e não é eliminada totalmente. Tudo depende se é uma torra leve, média ou escura, se a moagem é mais grossa, mais fina, isso tudo vai interferir também na presença da toxina. E o maior problema é que ela pode provocar lesões no fígado, nos rins. Em animais, principalmente em suínos, a Ocratoxina A tem uma capacidade de provocar má formação facial. Pela Agência Internacional de Pesquisa do Câncer (INCA), a Ocratoxina A é considerada uma substância possivelmente cancerígena. Já há comprovação em animais, mas não há ainda evidências suficientes de que a Ocratoxina A provoque câncer em humanos.
É uma toxina que faz com que precisemos desenvolver estratégias para reduzir a presença desses fungos no café. E uma das estratégias é justamente o controle de insetos, principalmente da broca do café, justamente porque os estudos mostram essa relação de grãos associados com a broca do café e a presença da toxina.
Vamos pensar num café Extra-Forte; quando a torra é mais forte, reduz-se a toxina.
Mas a torra não pode ser um processo para reduzir a Ocratoxina A. Tem que começar lá no campo, no plantio, no pós-colheira, até chegar na torrefadora.
Temos vários projetos, inclusive com a Embrapa Café, para levar a ideia para o produtor, de quanto ele ganha financeiramente se ele aplicar as medidas de boas práticas em sua lavoura. E o quanto ele perde, caso ele tenha algum problema com a qualidade de seu café. Nós passamos essas informações sobre a Ocratoxina A para os produtores. Temos estudos suficientes para demonstrar que o café de varrição é o que tem o maior risco de ter a presença da toxina. E, em termos de qualidade, o café de varrição é o que tem pior qualidade, se compararmos com o café que foi colhido cereja, ou despolpado. Mostramos ao produtor o seguinte: esse café de varrição vai ter um mercado menor e o produtor corre o risco de estar levando para uma cooperativa um café que vai apresentar riscos para a saúde dos consumidores. Mas, infelizmente, esse tipo de café tem mercado até hoje.
Nós estamos desenvolvendo algumas estratégias na UFLA cujo objetivo é dar uma outra destinação para esses cafés. Um exemplo é utilizá-lo para a produção de compostos antimicrobianos (para o tratamento de infecções). Então, ao invés de vender esse café ruim para a indústria, nós vamos utilizar para a produção de xaropes antimicrobianos. Nós temos uma outra pesquisa aqui na UFLA, que é a de usar esses cafés de varrição para a produção de cachaça. Durante sua produção, a Ocratoxina A não está dentro do processo, portanto, não apresenta riscos. Outro possível uso é a produção de energia, de biomassas. Essas são outras possibilidades, para que esse café ruim não chegue até o consumidor.
Grão Especial – E como convencer a indústria a não comprar mais esse café?
Luis Roberto (UFLA) – Penso que, com o tempo, o consumidor acaba ficando cada vez mais exigente. Essa interação da indústria com o consumidor está fazendo com que um café de qualidade inferior comece a ser deixado de lado. Mas, infelizmente, ainda tem um público fiel.
No caso do café com torra Extra-Forte, o consumidor tem que fugir dele, porque é uma das formas de mascarar uma série de defeitos. Penso que essa escolha já é uma tendência, que a legislação se aprimorando, protegendo o consumidor e, por sua vez, o cliente se tornando mais exigente, vai fazer com que a indústria comece a mudar. A gente já vê algumas empresas que já não aceitam comprar alguns tipos de café. O convencimento vai partir do consumidor, e isso já está acontecendo. Hoje, ele já quer o café em grãos, não quer mais o torrado e moído, o que não existia alguns anos atrás, ele tem auxiliando nessa mudança.
O que temos feito também nas Universidades é desenvolver, para a própria indústria, novas soluções para atender esse novo mercado mais exigente. Por exemplo, estamos trabalhando numa pesquisa sobre a utilização da internet das coisas. Esse é um projeto que foi iniciado em 2018, os recursos financeiros foram liberados em 2019, mas, em função da pandemia, tivemos um hiato. Utilizando a internet das coisas, o produtor recebe informações em tempo real das condições do café que está em seu terreiro, com uma análise sobre os riscos de produção da Ocratoxina A. O app alerta qual o melhor momento para cobrir esse café ou de levá-lo para o secador e, dessa forma, manter sua qualidade.
Essas iniciativas são para preservar o valor econômico do café que ele está produzindo, gerando mais valor agregado e melhorando a sua renda e, ao mesmo tempo, preservando a saúde da população e oferecendo soluções para a indústria.
Moni Abreu, especialista em cafés especiais e coffee-hunter, foi quem levantou esse assunto, em seu instagram.
Grão Especial – Como esses fragmentos de insetos vão parar nos pacotinhos de café?
Moni Abreu – Nós temos duas questões. A primeira é a indústria do café operando com lucros cada vez mais altos e, a segunda, é a utilização de cafés cada vez mais baratos, o que significa que a indústria trabalha com cafés de baixa qualidade. São cafés de varrição, de quando acaba a safra, os grãos maduros caem no chão e são varridos. E são varridos com tudo o mais que sobra, que não é mais café, como café verde, café podre que estragou no pé, café que está com o bicho da broca, que tem minhoca da broca. Esses produtos já não são mais café.
A realidade é que o produtor, por necessidade, vende esse café varrido para a indústria, que o trata como um produto. Só que não é! Isso não é mais alimento! Café é uma fruta!!!Aquilo ali não é mais alimento. Mesmo assim, acaba no pacote do café Tradicional, Forte e Extra-Forte que o brasileiro compra no supermercado.
E a diferença do Tradicional, do Forte e do Extra-Forte é o nível de carbonização do processo da torra. Porque o nível de torra brasileiro é feito pra maquiar todos esses problemas. Tradicional, Forte e Extra-Forte, é tudo a mesma coisa!
Grão Especial – O que mudou ao longo das décadas?
Moni Abreu – Até aa década de setenta, oitenta, a gente ia na padaria comprar café, o cliente pedia pra torrar na hora a quantidade que queria levar pra casa, ou seja, ele via o grão. Bem ou mal torrado, com mais ou menos defeitos, a gente via que era café. Depois, a prática sumiu, já não se torrava na frente do freguês. A indústria percebeu que podia lucrar muito mais se colocasse dentro do pacote, o café já moído. E o que é moído não é visto e o que não é visto o coração não sente. A lógica foi mais ou menos essa.
Grão Especial – Então, vamos voltar um pouquinho e explicar uma coisa para o consumidor em geral: quando você vai ao supermercado e compra um pacotinho de duzentos e cinquenta gramas de café, de uma grande indústria, onde se lê “Café Extra-Forte”, o consumidor está comprando exatamente o quê?
Moni Abreu – Um dia pode ter sido café. Mas não é mais. Em termos de produto alimentar, eu posso garantir que, o que tem lá dentro do pacote, um dia, pode ter sido café. Mas não é mais por questões produtivas. Nas fazendas, o café sofre muitas intempéries. Chove, molha e apodrecem os grãos, coisas normais de qualquer cultura, principalmente de frutas. Porque a gente precisa levar em consideração que o café é, antes de tudo, uma fruta.
O que acontece é que, com o café, a gente não usa a fruta exatamente, usamos apenas a semente, mas lembrando que contaminação é contaminação. Bilhões de bactérias entrando em alguma fruta, ela vai contaminar a semente, vai alterar suas características gustativas, inclusive.
Grão Especial – E como é que uma pessoa leiga pode perceber isso, uma vez que a torra maquia esses problemas? O que eu quero dizer é: quando a pessoa compra um pacotinho de café num supermercado qualquer, que armas ela tem? O que ela pode fazer pra perceber a real qualidade do café que ela está comprando?
Moni Abreu – É uma ótima pergunta! Nós temos aí uma outra questão que é midiática, cultural. Que insuflou na cabeça das pessoas que café é, essencialmente, amargo. Gente, o café é uma fruta. O café de qualidade, ele é doce, naturalmente. É aromático, é cheiroso, cheira fruta, cheira flores, cheira caramelo, cheira chocolate. Então, essas pessoas que consomem há muitos anos café Tradicional, Forte e Extra -Forte estão muito condicionadas mental, psicológica e sensorialmente.
Grão Especial – E como mudar essa lógica?
Moni Abreu – As pessoas precisam se permitir conhecer cafés de verdade. Pra isso, precisam mudar de patamar. Um primeiro passo é mudar para o café superior, um 100% arábica, com um percentual menor de defeitos. Acredito que a melhor coisa para o brasileiro amante de café é ir pulando na classificação dos cafés. Isso vai fazer ele ir se acostumando a uma nova bebida.
Grão Especial – E depois?
Moni Abreu – E aí eu já iria para o café gourmet, que já é muito melhor. Vale muito mais o preço que se paga nele. É um café 100% arábica e com um quinto a menos de defeitos.
Grão Especial – Perfeito. Agora, o fato da Anvisa ter essa resolução que permite 60 fragmentos de insetos a cada vinte e cinco gramas de café torrado e moído. Como se explica?
Moni Abreu – A ANVISA trabalha dentro de pressupostos, regulamentações, normativas do que foi estabelecido. Assim, a Anvisa chegou a um patamar mínimo, dado pela própria indústria. E isso é tão tácito, tão claro, que as empresas continuam comprando cafés de varrição.
Grão Especial – Vamos sintetizar toda a nossa conversa. Qual é o seu conselho para os consumidores escolherem seus cafés?
Moni Abreu – É subir um pouco o patamar, primeiro escolher um café superior, depois experimentar um gourmet e, por fim, entrar no mundo dos cafés especiais.
O café superior, o gourmet e o especial são 100% arábica, que têm metade da cafeína e um pouco menos de sólidos solúveis. Então é claro, vai precisar, sim, de mais pó para fazer a mesma quantidade de xícara. Com um bom café em mãos, agora é ir experimentando as diversas receitas e perceber o que melhor agrade seu paladar!