Todo escritor quer mudar o mundo. Quando percebe que não consegue, apela para o artifício de criar um só para si. Mas nunca é só para si, ele quer conquistar leitores, compartilhar esse mundo imaginado, dar vida aos personagens e sentimentos que gostaria de encontrar no mundo real, se esse existe, e onde ele próprio vive.
Escrever é se permitir interferir no ritmo, no tempo, nos sentimentos. Escrever é libertador, mas o sonho ou a ilusão de ordenar ou desordenar conforme seu desejo nem sempre é fácil. Diante de uma tela em branco esses desejos aparecem, mas aparecem também as memórias, as amarras, as raivas, as necessidades de vingança ou então apenas a curiosidade de experimentar. Escrever é saber lidar com o vazio, é segurar a ansiedade para não estragar o personagem antes do tempo, é entender que se deve abandonar aquele ser ou aquela situação antes que o leitor te abandone. Mas o que o café tem a ver com isso?
Tudo. Pelo menos para mim. É a minha bebida companheira. Verdade que se escrevo uma cena com vinho, me permito servir uma taça, balanço-a em busca das lágrimas, tento descobrir aromas que muitas vezes são mais fáceis de serem lidos do que detectados. Já também servi uma dose de uísque e parei de digitar para fazer do dedo um mexedor, já devo ter experimentado com outras bebidas. Não sou e nunca me deixo exagerar nesse momento onde se pode criar qualquer coisa, prefiro estar no total controle e aí entra o café, como um companheiro, como a desculpa para aquela parada. Paro, vou até a máquina, abro o sachê, sinto seu aroma, sim, sempre o mesmo, rodo a alavanca e encho minha xícara vermelha, uma que não lavo durante o dia, como se os poucos resquícios do café bebido impregnados nas suas paredes servissem de cama e proteção para a próxima dose, quando eu optar por outra parada. Para mim é quase impossível não cheirar o café antes de beber, como mania de um jogador de tênis antes de sacar. Volto com ela na mão, sento de novo na cadeira e releio ou repenso no problema, na solução que quero dar para aquela cena.
Tem sido assim, descobri tarde minha inclinação para a escrita. Sempre fui um bom leitor, desde pequeno quando ia até a sede do Gabinete de Leitura Itapevense emprestar um livro, um tanto inconformado por saber que ali perto existiam muitos, mas trancados. Meu avô se mudou para São Paulo e deixou sua biblioteca trancafiada no segundo andar da edícula, lá ficavam os livros e um cofre. O cofre possivelmente vazio, os livros também desabitados, até que alguém os abrisse e criasse uma conexão entre o escritor que imaginou alguma coisa que só se concretiza no instante onde encontra um cúmplice para juntos desenvolverem aquela viagem.
Meu avô regulou seus livros, depois de décadas pude escolher entre os que resistiram aos cupins e traças e queria na minha biblioteca, mas ainda assim me passou um amor e respeito por aquele objeto. Virei editor, tentei mesmo numa editora de livros técnicos incorporar elementos da paixão que herdara do meu avô. Vendi a editora e por uma circunstância da vida me vi obrigado a escrever um livro num prazo curtíssimo, daquelas tarefas que só quem está muito comprometido assume tendo a clara noção que não encontraria alguém outro que topasse mergulhar naquelas condições. Assim pari o meu primeiro livro, uma biografia, fui ghost. Todo o orgulho por ter escrito um livro mantido sob sigilo. Só quem já foi ghost sabe como um ghost aprende a controlar o seu ego. Aprendi a controlar o meu e ganhei de presente a noção do prazer de escrever.
Foi uma experiência incrível, mas me recordo pouco, não me lembro quantos café tomei por dia naquela missão. Possivelmente bem menos do que o romeno Mircea Cârtârescu, meu teclado sequer tem o acento circunflexo invertido que ele exibe no nome. Nunca li nada do Mircea, só sei que como meu escritor preferido, Philip Roth, ele também espera ser reconhecido com o Nobel, mas o descobri num artigo em um jornal argentino que o romeno revelou no seu livro de memórias que toma quinze cafés por dia. Ganhou meu respeito, sempre respeitei os que fazem coisas que considero acima dos meus limites. Quando jogava basquete invejava a capacidade do Oscar de fazer cesta de três pontos, quando corria maratonas a capacidade de um queniano de acabar o mesmo percurso na metade do tempo que eu conseguia, e chegar ainda bem mais inteiro, ou então de um tenista de colocar a bola onde pensa, fato raro nas vezes em que piso numa quadra. O autor do tal artigo, o jornalista Nicolás Artusi diz que “escrever é um ato solitário e a tristeza só é aliviada com o café”. Para mim o café é importante, mas ele não alivia a minha tristeza, para mim funciona como um estímulo à reflexão, é depois de um gole que eu considero inverter o destino de um personagem ou um texto, é depois de outro gole que concluo que não devo mais mexer naquela parte ou resolvo começar outro arquivo ou apagar um parágrafo. O café é meu censor, um censor amigo, como se me obrigasse a rever a produção.
Quando me pediram um texto sobre café e literatura fui buscar no meu romance Eu não sei ter, cenas de café, claro que as encontrei, escrever é também colocar na vida dos outros os nossos hábitos. Dei uma busca no texto e a palavra café aparece 22 vezes entre as 59.515 que contam a história. Para quem estudou um ano de Matemática, míseros 0,00037 por cento das palavras, algo sem maior importância, mas que eu sabia que estava lá, como neste trecho:
“Adoro o aroma de café, lembro imediatamente da torrefadora quase vizinha à casa de minha tia em Itapeva. Não ponho açúcar nem adoçante, encaro o amargo e sinto a espessura da bebida cobrir minha boca. Parece que estou forrado de café e, mesmo sem ter comido, tenho por um breve instante a sensação de estar saciado, como se o complemento trouxesse com ele o alimento que não veio antes. Nunca tomei café para isto, mas naquele instante sinto o efeito de despertar invadir meu cérebro. Ele parece abrir um pouco mais meu olho e ter provocado uma conexão direta entre esse olho e minha boca agora amarrada, não por cordas, não imóvel; pelo contrário, quando tomo café tenho mais vontade de falar, mas agora não tenho ninguém para ouvir, só converso imaginariamente com Gregório. Quando penso nisso, começo a chorar, olho em volta e vejo meu amigo em tudo ali. Levanto, abro a outra porta menor e deixo a xícara em cima da pequena pia. Fecho de novo a porta, dou um descanso para a máquina e me dirijo ao consultório. Encosto na maçaneta e elucubro que geralmente é o terapeuta quem abre a porta, não dá a quem vem falar a opção da ação desde o princípio.”
Eu poderia escolher vários trechos de outros colegas, falar sobre café é quase um cliché, mas é daqueles que seguirá sendo adicionado a memória da literatura mundial. Vezes em momentos de solidão, como no que narrei acima, vezes como encontro de pessoas, como atitude fim ou como fundo, o café se insere na rotina das pessoas e possibilita uma pausa. E num mundo cada vez mais louco, uma pausa é sempre algo a ser respeitado.
Ah, tenho uma mania com o café, só o tomo curto. Quase me irrito quando o peço e a pessoa apenas não deixa a xícara transbordar, existem poucas coisas piores do que um café mal tirado. O homo economicus que me habita de vez em quando imagina que o curto ou o ristretto deveriam custar mais barato, se vai a mesma quantidade de pó ou grão, não vai a mesma de água, mas aí me conformo e assumo que tem coisas especiais que se paga para ficar na essência. Café é uma delas. Café é uma bebida que não se brinda ao beber, mas que merecia, merecia…
Marcelo Candido de Melo (instagram.com/marcelocandidodemelo), é escritor e vive de escrever, vive portanto, tomando café para avaliar o que produziu. Eu não sei ter foi publicado em 2011 e conta a história de um homem em dúvida entre ser fiel ao amigo ou ao amor, um dilema humano.