Objetivo é dar treinamento sensorial a partir de referências padronizadas, permitindo a identificação e nomeação correta das notas de aroma e sabor do café, e que estejam associadas com características de qualidades ou defeitos dos grãos
Como você aproveitou sua vida ao longo desses meses na pandemia? As cientistas brasileiras, Fabiana Carvalho e Verônica Belchior da The Coffee Sensorium @thecoffeesensorium trabalharam arduamente para criar o kit de Referências de Sabores, destinado ao treinamento dos profissionais do café.
Elas já vinham acalentando a ideia há algum tempo, antes mesmo de criarem o kit de Ácidos em 2019 (que será relançado em breve), desenvolvido para o provador de café ou ao postulante a Q-Grader e, claro, baseado nas necessidades desses profissionais. “No universo dos cafés especiais, é extremamente importante que o classificador reconheça o atributo de acidez na xícara, por exemplo”, conta Fabiana Carvalho, fundadora da The Coffee Sensorium.
“A partir disso, a gente conversou muito e pesquisou mais ainda para criar o kit de Referências de Sabor. Para que o provador entenda perfeitamente o que são notas muito positivas como notas exóticas, refinadas e o que é um defeito grave no café, como o riado, que é inadmissível numa xícara”, diz Verônica Belchior, que também é Q-Grader.
O que é um kit de Referências de Sabor
“É de extrema importância que os profissionais do café obtenham treinamento sensorial a partir de referências padronizadas. Esse tipo de capacitação permite a identificação e nomeação correta das notas de aroma e sabor, que estejam associadas às características de qualidade ou de defeitos do café”, explica Fabiana.
O kit contém 21 referências como banana, maçã, cravo da índia, floral, ervilha fresca, pepino, pão mofado, avelã tostada, borracha, medicinal (riado), cereal, pêssego, cereja, verdolengo, pera, laranja, chocolate, baunilha, açúcar caramelizado, queijo maturado e floral (herbal).
A The Coffee Sensorium desenvolveu o kit em parceria com o laboratório da UFMG, que já havia desenvolvido o de ácidos. O grande desafio da dupla foi levar o aroma para dentro da boca. “Fizemos uma lista do que deveria conter, usando como referência a Roda de Sabores da SCA (Specialty Coffee Association), contendo os grandes grupos de sabores como o frutado, floral, doce, especiaria, noz, verde vegetal e medicinal. “Buscamos na Roda de Sabores referências-chaves e, na literatura científica, os compostos e suas concentrações. Porque uma coisa é um composto ter cheiro de cereja. Outra bem diferente é gotejar esse composto na xícara de café sem modificá-lo. Foi extremamente trabalhoso ajustar as concentrações das soluções. Para isso, tivemos o auxílio de uma profissional da área de química”, conta Fabiana. Cada frasco dos compostos pode ser usado até 25 vezes.
“Deu muito trabalho encontrar os compostos voláteis para colocar no café. Descobrir, de fato, o que é uma nota de pêssego no café, porque, na maioria das vezes, fica obscuro para o provador. No caso da nota de pêssego – um atributo que é considerado muito positivo -, quando você utiliza o composto, percebe que é muito nítido”, explica Belchior.
“Do mesmo modo, características negativas, como o riado, ou um café de baixa doçura, eram difíceis de exemplificar. Com a utilização do kit, fica muito fácil”, diz. “Mostrar porque um café atinge uma nota de 90 pontos e outro só 80, era difícil de exemplificar. O kit é uma forma da gente demonstrar de fato essas diferenças e, treinando dessa forma, ao ir para uma mesa de cupping, o profissional fica muito mais seguro. E a percepção sensorial fica muito mais científica também. Infinitamente melhor do que ficar tentando pegar referências de memória”, salientam.
“Nosso objetivo central é justamente traduzir as informações acadêmicas, científicas, numa linguagem simples e democrática para que os profissionais da indústria de alimentos tenham acesso a essas informações. Estamos construindo uma ponte entre os pesquisadores e esses profissionais”, explica Fabiana.
“Minha vida profissional reflete essa dificuldade de maneira clara: eu vim da Academia, passei pela Indústria de Alimentos, me tornei Q-Grader. Mas a informação que eu recebia, não tinha uma sequência lógica. Espero que as pessoas possam dispor, a partir de agora, com o kit de Referências de Sabores, de um método de análise sensorial que auxilie na construção do conhecimento, com menos erros, menos viezes, menos desvios na descrição de café. Queremos que o profissional do café tenha tantas ferramentas para seu trabalho como o pessoal do vinho possui”, diz Verônica.
Redescobrindo os cafés brasileiros
As cientistas afirmam também que o kit de Referências de Sabores pode ajudar na comunicação sobre os cafés especiais brasileiros nomercado externo. “É muito bacana ajudar o mercado internacional a entender que o Brasil também produz cafés exóticos e, não só destinados a blends de expressos. Nós temos cafés “arroz com feijão” muito bem cultivados. Mas também temos os exóticos, afinal somos um país continental e nem nós mesmos conhecemos toda a nossa diversidade”, se posiciona Fabiana.
O kit já está disponível para pré-venda e será entregue a partir do dia 14 de junho. O valor para a pré-venda é de R$ 830 mais o frete. Acompanha também um livreto explicativo, um infográfico e a receita-padrão do café para as provas. Nesse momento, serão colocados à venda apenas 50 kits. O produto terá novas versões no futuro, de acordo com a própria evolução do mercado.
“Queremos oferecer maior liberdade para o profissional do café, que ele possa treinar com um certo protocolo. O resultado disso é que o mercado vai se aprimorar, uma vez que o kit de Referências de Sabores foi criado para democratizar o conteúdo acadêmico e, todo esse conhecimento, seja fácil de ser aplicado. Esperamos que a indústria cresça, que certos mitos caiam do Olimpo”, finalizam.
O kit de Referências de Sabores também pode ser utilizado por profissionais de áreas afins como cerveja, vinho, chocolate e chá, entre outros.
As cientistas
Fabiana Carvalho é neurocientista. É bióloga, bacharel e mestre em Bioquímica pela UFMG, onde se especializou em neuroquímica e processos de percepção e memória. É doutora em Psicobiologia pela USP e Universidade de Glasgow, onde utilizou neuroimagem para investigar como o cérebro humano percebe e prediz eventos a partir dos dados da experiência. Fez o seu primeiro pós-doutorado no King’s College London, Inglaterra, e o seu segundo pós-doutorado na USP. Hoje é pesquisadora na FEA-Unicamp onde investiga, em colaboração com a Universidade de Oxford (Inglaterra), o efeito de fatores externos na percepção de sabor de cafés especiais, assim como aceitação e intenção de compra pelo consumidor. Verônica Belchior é bióloga, mestre em Ecologia pela UFJF e doutora em Ciências de Alimentos pela UFMG e Universidade do Porto, Portugal. É Q-Grader e leciona cursos nas áreas de análise sensorial de cafés especiais e química do café. No doutorado, estudou a construção de modelos estatísticos preditivos da qualidade de cafés especiais classificados pelo protocolo da SCA. Hoje faz o pós-doutorado na UFMG dando continuidade ao tema de pesquisa do seu doutorado.